Quando alguém escreve
que “a Igreja em Portugal não tem, nem quer ter – a menos que o estado lhe
declare guerra – a menor influência política”, todos (à luz dos ideias do nosso
tempo) temos o dever de estar em completo acordo. Mas, quando dizemos que foi o
Cardeal António Cerejeira quem escreveu isto, ou nos sentimos diante do
“prelado de um regime” ou, como lhe chamaram, perante o Cardeal com duas faces.
A imagem que perdura
de Manuel Gonçalves Cerejeira sofreu várias mudanças após o período da ditadura
de Salazar e em mais de trinta anos de democracia.
A seguir ao 25 de
Abril de 1974, Cerejeira passou de chefe da igreja Portuguesa admirado pelos
católicos a figura ambígua, enfeudada ao sistema ditatorial, legitimador dos
desmandos do Governo do Estado Novo e da PIDE.
Trinta e cinco anos
após a sua morte, em 1977, passa a ser de novo admirado por alguns, como um
defensor da Liberdade e da Independência da Igreja, mesmo se teve de entrar em
compromissos com o Estado, embora uma grande maioria diga que isso é uma mistificação,
acusando-o de ter sido quem “atou a barca de Pedro ao mastro de César, um César
ditatorial”.
Para Irene Flunser
Pimentel (cf. Cardeal Cerejeira, ed. Círculo de leitores, Lisboa, 2002)
permanece a “visão de Cerejeira e Salazar, amigos e cúmplices, (...) de uma
hierarquia católica enfeudada ao estado Novo e de um ditador protector da
Igreja e servindo-se dela”.
Cerejeira continua a
surgir como o bispo reaccionário, elitista, cardeal de vestes luxuosas, com
gestos exuberantes e exibicionistas, sendo uma “figura chocante na sua
ostentação, num país de católicos, maioritariamente a viver na miséria e
submetidos a uma Igreja rica e a um Estado opressivo e corporativo” que usa a
caridade “para afirmar a sua boa consciência”.
Pessoalmente, as
opiniões dividem-se entre o “simpático e caloroso ou distante”, até ao cardeal
que tratava os seus padres como “filhos impossibilitados de atingir a
maioridade”.
Há quem o defenda como
alguém “capaz de fugir às questões difíceis, tolerante, defensivo, hesitante e
fraco – como dizia o seu amigo Salazar – ou o defina como “interventivo, severo
e castigador que não hesitava em purgar os abcessos, usando métodos
estalinistas”.
De ambíguo a hipócrita
ou de amante da riqueza e do espectáculo a humilde, simples, amante da pobreza
são vários os acentos que se lhe colocam.
Sabe-se que Cerejeira
conheceu e tornou-se amigo de Salazar na juventude e seguiu um caminho
diferente desde que o amigo foi para o Governo e ele para a chefia da Igreja
mas não lhe é perdoado o silêncio perante a violência política, da censura e
das vítimas da repressão, com o único objectivo de manter a independência da
Igreja.
Todas as opiniões
podem conter uma parte da realidade, mas há uma certeza ainda hoje: Cerejeira
motivou tudo menos indiferença e marcou uma época, no campo eclesial e no
espaço político e social.
Há uma pergunta interessante
a fazer: como terá olhado ao morrer, contente de ser pobre e desejoso de ser
enterrado numa campa rasa para os seus quase 90 anos de vida?
Como recordou o distante
ano de 1888, em que nasceu numa zona rural do Minho, em Famalicão, no seio de
uma família pobre e católica, que conseguiu através dos estudos no Seminário de
Braga fazer com que ele fosse uma figura marcante do regime e não um obscuro pároco
de aldeia?
Como Salazar, foi
através do Seminário que Cerejeira conseguiu chegar ao trono de Minerva, em
Coimbra, num percurso de ambos que não deixa de ser coerente e é fruto daquele
tempo.
Ambos defendem em
Coimbra a democracia cristã dos finais do séc. XIX, orgânica e corporativa
contra a monarquia e o republicanismo, com a salvaguarda da liberdade de acção
e de culto da Igreja.
Ambos permaneceram
solteiros, mas por razões diferentes, para servir melhor a Igreja (num caso) e
o Povo (no outro) mas tinham temperamentos diferentes.
O Cardeal é definido
como “malicioso, apaixonado, extrovertido, irónico, romântico, sentimental,
descuidado, desordenado, inovador, simpático, alegre, sensual e hesitante”
contra um beirão “sisudo, racional, frio, reservado, discreto, metódico,
infeliz, ordenado, organizado, avesso a novidade, orgulhoso, ambicioso,
contraditório, austero e feminino". A hesitação era a única característica
comum, encoberta pelo uso da força que lhes desfazia a imagem de incapacidade
de decisão e de escolhas.
Aluno brilhante em
Coimbra, Manuel Cerejeira doutora-se em história e assume-se como professor e
investigador, procurando a legitimação
do catolicismo, do conservadorismo e do nacionalismo.
Lendo muito, manteve
correspondência com adversários políticos e religiosos, excepto aqueles que não
fossem tocados pela “heresia da nossa idade”, o marxismo.
Como cardeal,
perdurou na nossa memória colectiva como alguém rendido ao Estado Novo, que
nunca protestou perante as violências do regime, as torturas, as prisões, a
PIDE, a Censura, a guerra colonial, a miséria e a ausência total de liberdades.
Ele é a corporização
d uma Igreja que se “serviu do regime para influenciá-lo e manter privilégios”,
através de meros encontros pessoais e protocolares.
Quando foi criada a
Mocidade portuguesa, Cerejeira temeu pelo controlo da educação da juventude,
oferecida por Salazar e “enervou-se” porque a Igreja de Cerejeira era a “principal
defensora dos direitos da família e da Juventude, para disputar ao estado a
influência sobre estas”.
Assim, a Igreja
mantinha o “direito exclusivo de actuar no seu seio e catequizá-los” e
Cerejeira cuidou, em primeiro ligar, de assegurar a independência da sua
Igreja, ao ponto de Cerejeira defender o Estado Novo plesbicitado na
constituição de 1933.
É por isso que
Cerejeira, apesar de tudo, aprova a Concordata sem exigir maior apoio
financeiro estatal ao clero e indemnizações à Igreja por causa das confiscações
de 1910.
O que preocupava
Cerejeira não era a essência do regime ditatorial mas os ataques à Igreja e à
Acção católica, daí que tenha recusado sempre qualificar o governo de Salazar
como autoritário
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