Thursday, August 12, 2010

Cem anos de República no Minho (12)


Descoberto o figurão que se fazia passar por el-Rei D. Miguel, em Calvos, na Póvoa de Lanhoso, onde simulou uma sessão de despacho governamental, as tropas de Braga deslocaram-se a Calvos para prender o finório aldrabão de padres absolutistas. O relato camiliano em “A Brasileira de Prazins” vale a pena ser transcrito, com a chegada do Veríssimo, o falso rei, a Braga... dividida em duas maneiras de estar perante a vida.

Prometêramos há 15 dias descrever a chegada a Braga, seguindo as palavras de Camiloo Castelo Branco e é o que vamos cumprir, em seguida.

AS DUAS BRAGAS
E DOIS MINHOS

Com esta incursão na literatura, apenas quisemos demonstrar aos nossos leitores como o clero rural contribuiu de forma cla-morosa para o atraso no enraizamento dos ideais da Revolução Francesa conducentes à implantação da República, à qual se juntam alguns erros dos liberais, como a independência do Brasil e algum despotismo dos seus governantes. Regressemos a Camilo:

O Campo de Santa Ana parecia um arraial. Aglomeravam-se ali as duas Bragas — a fiel, a caipira, pletórica de fidalgos, de grandes proprietários, cónegos, de chapeleiros e da clerezia miúda; — a liberal, muito anémica, encostada ao 8 de infantaria, toda de bacharéis e empregados públicos, (...) negociantes de tendas mesquinhas, professores muito retóricos, o Capela, que ensinava fran-cês, o Pereira Caldas, sone-teiro e polígrafo, o velho Abreu bibliotecário, lacrimoso, o Pinheiro, muito grande, filósofo sensualista, mas bom vizinho, todos à volta do Monte Al-verne, um cónego muito assanhado, que foi, meses depois, comandante da brigada dos serezinos.

Cerveira Lobo impunha e dominava com as suas barbas, o trajar asseado com muito lustro, e o bater metálico, patarata, das esporas. Abriram-lhe passagem, rodeavam-no cavalheiros da primeira plana, os Vasconcelos do Tanque, os Magalhães, o Freire Barata, o Cunha das Travessas, a gema daquele enorme ovo realista, chocado no seio da religião da Carlota Joaqui-na, do conde de Basto e do Teles Jordão.

O Cerveira perguntava aos seus:

É? — uns encolhiam os ombros, outros negavam gesticulando. E ele, com intimativa:
— Pois saibam que é!
O Manuel de Magalhães dizia ao ouvido do Henrique Freire:
— Deixa-o falar, que está idiota.

O Bernardo de Barros, um fidalgo de Basto que fora capitão de cavalaria, com um bizarro sorriso de corte e ademanes de uma selecção rara:
— Meu tenente-coronel, el-rei, quando vier, não há-de estar ao alcance da canalha. Descanse vossência.
Os janotas acercavam-se, desfrutadores, do Cerveira. Eram o Russel, o António Gaspar, os de Infias, o Bento Miguel de Maximinos, o Paiva Brandão, o D. Manuel de Prelada, o D. João da Tapada, o António Luís de Vilhena, um loiro, muito enamorado, com uma rosa-chá na lapela da casaca azul com botões amarelos.

Daí a pouco fez-se um torvelinho de povo à porta do Governo Civil. A soldadesca afastava a multidão com frases persuasivas de coronha de arma. Formou-se a escolta, e o preso saiu, de rosto levantado e afoito, rara a multidão. Cerveira Lobo fitava-o com uma ansiedade aflitiva.


—Que se parecia... e ia jurar que era ele! — quando um realista convencionado e que estava no grupo, o major de Vila Verde, disse com um desdém de achincalhação:
— Olha quem ele é! Oh que traste! que grande mariola! Forte malandro!
— Quem é? quem é? —perguntavam todos.
— É o Veríssimo, foi furriel da minha companhia, andou com o Remexido, e safou-se de Messines com o pré dos guerrilhas.

O Cerveira inclinou-se ao pedreiro e disse-lhe à orelha:
— Ouviste, ó Zeferino?
— Estou banzado! —murmurou o outro.
— Olha que espiga! três contos! hem?
— Raios parta o Diabo! — disse o pedreiro, numa síntese condensada da sua incomensurável angústia.

Minutos depois, o padre Rocha encarava de frente o Cerveira, chamava-o de parte e dizia-lhe:
— Está desenganado, meu amigo? Eu, para corresponder à confiança de V. Exª, impus-me o dever de o salvar de um roubo de três contos, e da vergonha de ser logrado por um impostor. O maior serviço que podemos fazer ao Sr. D. Miguel é entregar à justiça um infame que se serve do seu sagrado nome para roubar os amigos do augusto príncipe.

(...) O Veríssimo entrou na cadeia de Braga, e na ma drugada do dia seguinte foi transferido para a Relação do Porto.”

O nome e apelidos que ele deu no Governo Civil eram verdadeiros: Veríssimo Borges Camelo da Mesquita.”

Cem anos de República no Minho (11)


Diz-se “por lá que o Sr. D. Miguel está no Alto Minho, no concelho da Póvoa de Lanhoso. Propalam-no certos padres, não sei com que alcance. A estupidez tem intuitos impenetráveis. Não percebo para que fim espalham tão absurdo boato, se não é para alarmar o governo ou lograr incautos” — é assim que Camilo Castelo Branco começa a desenvolver o mito do miguelismo em “A Brasileira de Prazins”.

Esta incursão — ou parêntesis — na escrita camiliana apenas se destina a provar que o clero católico rural teve uma influência veemente no retardar dos ideais da Revolução Francesa que hão-de originar esntre nós a implantação da República.

A resposta é precisamente “lograr incautos”. É o próprio Camilo Castelo Branco que disso está convencido quando explica a natureza do fenómeno e aponta os seus autores: “se pudéssemos dar remédio mais suave à doença desse miserável impostor, de quem eu sei mais algumas traficâncias. Constou-me há poucas horas, que umas beatas de Braga, abastadas, e de apelido Botelhas, tinham enviado uma importante quantia, por intermédio de um certo abade, a um D. Miguel que está escondido em Portugal".


De facto, narra Camilo, “constava que D. Miguel estava escondido na residência do abade de São Gens de Calvos, no concelho da Póvoa de Lanhoso, o reverendo Marcos António de Faria Rebelo. Que pouquíssimas pessoas o tinham visto, porque Sua Majestade só se mostraria aos seus amigos fiéis quando entras-sem pela Galiza os generais estrangeiros que se esperavam, uns do antigo exército carlista, outros de Inglaterra.

O primo Cristóvão redarguiu, magoado na sua esperteza, que era tão certo estar elrei em Calvos como era certo ter-me beijado a régia mão em casa do abade, na noite sempre memorável de 16 de Abril de 1845.

Que só o tinha visto de relance em Braga em 32, mas que o conhecera pelo retrato; que até manquejava um pouco, tal e qual, como se sabe, depois que Sua Majestade quebrou a perna em 28. Que el-rei nomeara o abade de Calvos seu capelão-mor, que dera a mitra de Coimbra ao abade de Priscos, e fizera chantre o padre Manuel das Agras, e a ele lhe fizera a mercê de duas comendas e o título de barão de Bouro, afora outras graças a diversos clérigos e leigos
.”

Estão criados os ingredientes camilianos para a realização de uma sessão da Corte do rei absolutista em Calvos, na mais perfeita clandestinidade.

Naquele ano, por meado de 1845, espalhara-se no ambiente dos realistas, como um aroma de jardins floridos, o boato de que vinha o Sr. D. Miguel. (...) . Na residência do abade Marcos Rebelo, em São Gens de Calvos, havia uma sala com alcova e janelas sobre uma horta arborizada. (...) Dez horas. Abriu-se então a porta da alcova, que rangeu ligeiramente na couceira desengonçada, e saiu um sujeito de mediana estatura, ombros largos, barba toda com raras cãs, olhos brilhantes, pálido-trigueiro, um nariz adunco. Representava entre trinta e seis e quarenta anos.

Sentou-se à braseira e preparou um cigarro, vagarosamente, que acendeu na aresta chamejante de uma brasa. Com o cigarro ao canto dos lábios e um olho fechado pelo contacto agro do fumo, foi abrir uma das vidraças, e pôs fora a mão a sondar a temperatura. Coxeava um pouco. Recolheu a mão com desagrado e fechou a janela. Vinha subindo a escada de comunicação com a cozinha uma mulher idosa, em mangas de camisa, meias azuis de lã e ourelos achinelados. Pediu licença para entrar, fez uma mesura de joelhos sem curvar o tronco, e perguntou:


— Vossa Majestade passou bem?
— Optimamente, Se-nhorinha, passei muito bem.

— Estimo muito, Real Senhor. O Senhor Abade foi chamado às oito horas para confessar uma freguesa que está a morrer de uma queda, e deixou dito que pusesse o almoço a Vossa Majestade, se ele não chegasse às nove e meia".

Serve-se o banquete ao Rei que “já tinha comido tripas, e dizia que no exílio se lembrara muitas vezes desta saborosa iguaria com feijão branco e chispe, que tinha comido em Braga. O abade de Calvos sensibilizava-se até às lágrimas quando via el-rei a esbrugar uma unha de porco e a limpar as régias barbas oleosas das gorduras suínas. O terceiro prato era vitela assada. (...) Ninguém há-de crer o que Sua Majestade atafulha naquele bandulho! — e dizia que lhe dava vontade de chorar, lembrando-se das lazeiras que ele tinha apanhado; porque o abade contava que lera no Deus o quer, do visconde de Arlincourt, que o Sr. D. Miguel, em Roma, não tinha às vezes 10 réis de seu para almoçar uma xícara de leite.
(...) No fim do copioso almoço, el-rei fumava charutos espanhóis, de contrabando; desabotoava o colete, dava arrotos, repoltreava-se na cadeira de sola um pouco desconfortável, e vaporava grande colunas de fumo que se espiralavam até ao tecto.”

Depois, o falso rei despachará assuntos do reino.