Monday, September 17, 2012

Os rostos da República: Manuel Cerejeira (09)


Chegamos ao momento do descrédito total do “príncipe” da Igreja em Portugal. Nem Salazar estava a seu lado, como se vê na inauguração do Monumento a Cristo Rei, em 1959, enviando Américo Tomás, a quem ordena discrição nas cerimónias.

O silêncio do Cardeal Gonçalves Cerejeira, face às atrocidades do regime salazarista, tornou-se “ensurdecedor e até cúmplice do regime" quando, ao chegar à fronteira de Valença, a 18 de Outubro de 1960, o bispo do Porto foi impedido pela PIDE de entrar no país, iniciando um longo exílio de dez anos.

Dos raros prelados que reagiram a esta afronta salazarista, salva-se Alves de Pinho que encoraja Cerejeira a “encabeçar um movimento de protesto de todos os bispos portugueses em defesa” do bispo banido. O pedido do Arcebispo de Luanda ficou sem resposta.

O ano seguinte é descrito como o “annus horribilis” para Salazar e o regime, com o desvio do paquete Santa Maria por um comando oposicionista, o início da guerra colonial em Angola, a invasão e anexação de Goa, Damão e Diu pela Índia e a tentativa de assalto ao quartel de Beja no fim do ano.

No decurso da campanha eleitoral para a Assembleia Nacional, em 1961, dois católicos de renome concorrem pelas listas da Oposição – Lino Neto e António Alçada Baptista – e o episcopado emite uma nota dando apoio indirecto às listas da União Nacional e lembrava que não era lícito aos católicos “votar nos comunistas” porque traíam as “suas responsabilidades”.

Intensa agitação estudantil se regista em Lisboa e Coimbra e um quartanista de direito é eleito para a presidência do CADC que Cerejeira fundara. O regime pressiona o bispo de Coimbra para não validar a eleição mas este, aconselhado por Eurico Dias Nogueira, actual Arcebispo Emérito de Braga, respeita a vontade das maiorias.

O Cardeal não escondia a preocupação com a “crescente atracção que o comunismo exercia sobre muitos militantes católicos, desesperados com as injustiças sociais e a ausência de liberdade do Estado Novo”. 

Numa tentativa de equidistância, o Cardeal Cerejeira, depois de atacar à esquerda, assestou baterias sobre a direita, condenando certo anticomunismo “por defender privilégios e combater o comunismo não tanto pelos seus erros, como pelas duas verdades e concordando com os críticos da economia liberal e da miséria imerecida” – expressão de Ferreira Gomes - dos trabalhadores” (cf. NOGUEIRA, Eurico Dias, “Louvor e sufrágio por um lousadense ímpar”, in Lusitania Sacra, p. 233.).

Aquele que um dia desabafou que “o rio Ave passara por Lousado só para me saudar quando nasci” é chamado a participar, em 1962, na abertura do Concílio Vaticano III liderando uma representação portuguesa conservadora, em que "Sebastião de Resende, Ferreira Gomes mostraram posições mais abertas ou, como Eurico Nogueira e Vieira Pinto, atitudes mais progressistas” (cf. NOGUEIRA, Franco, in Salazar, Atlântida Editora, Coimbra, Vol. V, pp. 429-444).

Salazar não escondia a sua preocupação, especialmente com a encíclica Pacem in Terris, de Abril de 1963, que abria largas perspectivas ao progressismo, que ele definiu como um “desatino”. Uma intervenção cirúrgica retém Cerejeira em Portugal, após a morte do Papa João XXIII, em Junho, mas não o impede de emitir uma nota pastoral contra o monopólio educativo do Estado, relembrando que o sistema escolar português estava longe de dar cabal cumprimento aos princípios constitucionais e concordatários de liberdade de ensino.

Neste documento rebate as acusações crescentes de que a Igreja apenas se preocupa com os filhos dos ricos mas novo problema estala nas relações entre Cerejeira e Salazar: o papa Paulo VI anuncia uma visita à Índia, para o presidir ao Congresso Eucarístico de Bombaim e não exclui uma visita a Goa. O Papa enfurece Salazar que ameaça Cerejeira de denunciar a Concordata.

Assustado, o cardeal encontra-se duas vezes com o Papa que, por fim, lhe assegura não ir a Goa nem desejar que a viagem fosse considerada um acto menos amistoso para Portugal. Salazar sossega mas mandatou Franco Nogueira para dizer ao Núncio Apostólico em Lisboa, “de uma maneira brutal”, “esperar morrer sem ver no país um Papa que tanto agravara Portugal”.

O recado do ministro deixou o Papa magoado e os bispos portugueses sentiram-se consternados, quando ainda se encontravam no Concílio, enquanto a censura dava ordens para não deixar publicar qualquer menção à visita do Papa à Índia, o que leva António Ribeiro, colaborador religioso da RTP, mais tarde Patriarca, deixar a estação ao ser-lhe vedada a realização de um programa sobre o acontecimento.

A censura cortou o discurso do Papa no jornal católico Novidades e ameaçou suspender o jornal. Estas proibições foram secundadas por Cerejeira “sob pena do governo cortar relações com a Santa Sé”. 

Quinze padres de Setúbal não aceitaram o recado do Cardeal e em Évora quatro foram presos pela PIDE.

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