Monday, November 29, 2010

Cem anos de República no Minho (19)



Que descrição podemos fazer do Minho quando eclodiu a revolução republicana?

A dimensão rural entrava pelos muros da cidade medieval que era Braga, com escassos milhares de habitantes, ao mesmo tempo que chegavam às nossas aldeias alguns ecos da influência da onda migratória a que o país assistiu nas duas últimas décadas do século XIX.

Em Braga, a par de muitos edifícios religiosos, deparamos com vários imóveis destinados a fins militares e uma ou outra associação de cariz sócio-caritativo (Associação Fúnebre e Montepio de S. António ou de S. José).

O analfabetismo — com os malefícios conhecidos — é muito elevado, percebendo-se assim a pobreza material da população urbana e rural bem como a escassa participação política dos minhotos. No distrito de Braga, 77 por cento eram analfabetos, na capital do Minho havia um liceu, várias escolas primá-rias e seminários. A Biblioteca Pública “não tem uma única vidraça que não esteja a cair de podre”.

O número de pobres que vagueavam pela cidade é difícil de entender por nós. O Jornal “Commercio do Minho” dava conta da existência de quatrocentos pobres que, um ano após a implantação da República, recebiam géneros e algum dinheiro para as primeiras necessidade. Era o bodo dos pobres que, com a chegada da I Guerra Mundial, assume números dramáticos: em 1919 havia duas mil pessoas que recebiam o bodo dos pobres em Braga.

O vaguear dos mendigos pelas ruas levou o escritor Miguel Unamuno a escrever, quando visitou o Minho: “sinto ferida a minha dignidade humana” porque “se privam a estes desgraçados as mais caras ,liberdades, mas não a liberdade de pedir esmola”.

Não fora a acção do bispo D. Frei Caetano Brandão, promotor de uma feira agrícola e industrial, uns anos, antes, quase se podia dizer que em Braga nada acontecia em termos culturais, sociais e económicos. Se assim era na grande cidade, podemos extrapolar sem exageros para o vazio das nossas aldeias que apenas eram agitadas pela irreverência de um ou outro Reverendo pároco.

Surgiam as primeiras fábricas de chapéus, de sedas enquanto o Teatro S. Geraldo era o único espaço cultural e político da cidade.

No início do século XX, Braga e seu termo sentiam carências enormes na saúde, na educação, no abastecimento de água e nas vias de comunicação. Sirva de exemplo, para percebermos, que não existia estrada entre Braga e Chaves e só no ano 1900 arrancaram as obras de ligação à cidade transmontana.

A electricidade chegava a Braga mas registavam-se muitos cortes e interrupções e em muitas aldeias — apesar de tantas décadas após a Revolta da ria da Fonte — ainda se faziam enterros dentro das Igrejas, contra todas as normas de saúde e nos adros.

Este comportamento, além de mostrar a religiosidade popular, traduz também a poderosa e inquestionável influência — muitas vezes caciquista — da hierarquia católica fomentadora da ignorância daqueles que teimavam em sepultar os seus entes queridos o mais possível próximo de Deus. Em 1901, o arcebispo de Braga lançava um apelo para que todas as paróquias construíssem um cemitério.

Em 1908, na freguesia de Priscos, em Braga, o Governador civil lamentava que tenha sido inumado na Igreja o cadáver de uma mulher, mais cinco cadáveres que estavam sepultados no adro e foram exumados.

"Desde o nascer do sol, as beatas infestam as igrejas, segurando grandes rosários” enquanto “os aldeãos transportam para a praça os seus produtos da sua lavra, até às dez da noite, hora a que fecham os estabelecimentos, transformando-se a cidade num túmulo” — escrevia José Valdez, em 1911.

Trazemos aqui este retrato do Minho para percebermos melhor até que ponto a República foi madrinha do desenvolvimento desta região, especialmente Braga.

Cem anos de República no Minho (18)



O que era o Minho aquando da implantação da República em 1910 que se há-de transformar no junqueiriano “bacanal de percevejos num colchão podre”?

A resposta pode ser encontrada em muitos documentos mas bastar-nos-á “O livro d’ouro da primeira viagem de S. M. El-Rei D. Manuel II a Braga”, em 1908, para encontrar a resposta mais eloqüente. Esta resposta possibilita-nos avaliar o estrondo cultural, social e religioso que a República provocou em todo o Minho, onde os “cidadãos são fidelíssimos tradicionalistas, na religião, na política, na indústria e na Arte”.

Na cidade capital do Minho surgiam as “novas indústrias e floresciam as antiga, a luvaria, os sapatos, os couros, as ferragens, os linhos; mas o chapéu braguêz, o pesado e moreno feltro, quasi impermeácel e imutável, nada o destronará” — escrevia, em 1909, Joaquim Leitão.

Quem vivia na cidade? A resposta também é dada pelo “Livro d’ouro...” que descreve o “nódulo central de Braga, aparte um armezendado comercial, é para o solar, o palácio e o templo” porque a população operária das novas indústrias “descentraliza-se para as cordas do círculo, às ruelas em que cada telhado é uma fábrica e cada ser um artífice, n’outras tantas pernas laboriosas d’essa aranha a que, avistando-a do Monte, Ramalho Ortigão comparou Braga”.

E mais, “longe d’esse fragor proletário dos agrupamentos fabris, Braga remanesce o socego solarengo e a paz dos mosteiros” ostentando a “flor da nobreza minhota que é a mais antiga de Portugal”.

O povo cultivava de sol a sol as grandes propriedades da “nobreza mais antiga de Portugal” e os operários associavam-se para poderem pagar os funerais, tal era a pobreza em que vivam o povo, excluído do “nódulo central” dominado pelo solar, o palácio e o templo”.

Por isso, o Minho cedo é arregimentado para “esta marcha heróica a caminho do cano de esgoto” — como descreveu o nosso adoptado vimaranense Raul Brandão.

Braga, como já escrevemos, viveu essa hora de fervor republicano em que a política agora é de todos e não de elites.
Ai de quem se prclamar monárquico. Se a política é de todos, não quer dizer que todos possam ter qualquer política. O exercício da política é monopólio exclusivo dos republicanos, que são ao mesmo tempo a situação e a oposição”. É assim que decreta o jacobinismo triunfante que leva hordas de monárquicos “feios a serem bonitos”, enquanto outros se fecham nos seus palácios (até à impossibilidade de os sustentar) e outros se refugiam em Espanha.

Os monárquicos que queiram manter-se nas estruturas do poder fazem a sua conversão ao republicanismo. São os “adesivos”, centenas de funcionários e políticos do anterior regime que professam agora a mais incondicional ideologia republicana.

Na administração pública, não reina o primado do mérito ou da competência, mas a fidelidade do grupo. Os até agora excluídos são promovidos: o marchante passa a ser negociante de carnes verdes, enquanto o padeiro é agora industrial de panificação. Tudo quer igualdade, para cima...pulverizando-se a autoridade do Estado, primeiro o passo para a atmosfera anarquizante que reinava nos últimos tempos da monarquia.

Se a monarquia é derrubada por um acto terrorista — o assassínio de D. Carlos e do príncipe herdeiro — será um feito terrorista que a vai derrubar: o golpe de 26 de Maio, precipitado pelo gesto terrorista que mata o herdeiro da coroa austríaca, em Sarajevo, em 1914. Começa assim a I Guerra Mundial, onde Portugal se envolve para proteger as fronteiras em África, enviando 55 mil homens para a guerra nas trincheiras da Flandres.

A grande guerra traça a marca mais profunda na sociedade portuguesa na segunda década do séc. XX: carência de géneros essenciais, aumentos dos preços, desvalorização do dinheiro, racionamentos, assaltos a armazéns, confrontos entre civis e militares, peste pneumônica e a revolução de Gomes da Costa. Mas a República gerou profundas alterações na sociedade portuguesa, como demos conta na crônica passada e desenvolveremos na próxima.