Friday, January 25, 2013

Os rostos da República: Fernando Pessoa (2)

 
Fernando Pessoa foi "o enigma em pessoa" e foram necessários 55 longos anos para estudar e descobrir toda a sua obra, graças ao trabalho incansável de Teresa Rita Lopes, plasmado em “Pessoa por conhecer”.

É esta investigadora que nos demonstra que Fernando Pessoa não inventou três, nem dez, nem trinta personagens escritores, mas mais de 70 – assegura Richard Zenith, um especialista americano premiado em traduções pessoanas que levaram este escritor português a todo o mundo.

De facto, o conjunto de inéditos que foram divulgados após a sua morte em 1935 ultrapassa todas as expectativas, pela quantidade e pela qualidade mas também pela grande variedade de temas, géneros e estilos.

Ninguém esperava que aquele que começou a idealizar o “Livro do Desassossego” há cem anos tivesse tantos bilhetes de identidade fictícios (ou reais?), para além dos mais conhecidos Caeiro, Campos, Reis ou Bernardo Soares.

João Gaspar Simões descobrira, 15 anos após a sua morte, alguns heterónimos ingleses, cuja extensa obra só começou a ser divulgada em 1960, década em que se conheceram o barão de Teive (aristocrata que se suicida) e Rafael Baldaia (esse astrólogo que gostava de filosofia).

Teresa Rita Lopes descobriu também que os vários nomes de Pessoa dialogavam entre si, comentavam-se criticando, acaloradamente, para além de perceber que as estrelas do universo pessoano não eram fixas porque se moviam e se influenciavam mutuamente.

Perante a vastidão deste universo, descobrimos novos poemas, novas facetas literárias e novos nomes que fazem deste vanguardista que abalou o pacato meio cultural português um escritor único no mundo.

Deixou-nos dois mil e quinhentos papéis numa arca de madeira, a prova de uma vida com muita substância e muita emoção.

Quanto em mim haja de humano eu o dividi entre os autores vários de cuja obra tenho sido o executor” – escreveu Fernando Pessoa, numa primeira tentativa de explicar os heterónimos, ao ponto de Álvaro de Campos chegar a escrever que “Fernando Pessoa não existe, propriamente falando”.

Outro é o caso do Livro do Desassossego, cujo embrião celebra este ano cem anos, apresentando pensamentos e sentimentos pertencentes a Pessoa mas narrados por Bernardo Soares, um simples ajudante de guarda-livros que trabalhava e vivia na rua dos Restauradores…

É nesse livro que Pessoa escreve (perdão, Bernardo Soares): “A minha vaidade são algumas páginas, uns trechos, certas dúvidas…” 

Mas é aí que ele desmonta a imagem cliché que chegou até hoje de si próprio: um par de óculos, um bigode e uma gabardina, sem corpo, sem amor físico, sexual e quase nenhum desejo. Pessoa não era “um homem sem qualidades mas um conjunto de qualidades sem homem”.

Falsamente nos transmitiram isto porque Pessoa “era um homem social e sexual como os outros, com uma vida quotidiana rica em acontecimentos, prazeres, dores e esperanças” mas sempre foi “tímido, reservado e resolutamente privado” (cf. ZENITH, RICHARD, in Fernando Pessoa, Circulo de Leitores, Lisboa, 2008, pp. 8-16).

Onde acaba a obra pública, publicável e começa o homem privado? Em Pessoa é quase impossível separar as duas facetas.

Quando, em 1978, foram publicadas as cartas de amor que Pessoa escreveu á sua única namorada, Ofélia Queirós, algumas pessoas pensaram que era uma depredação. Nada mais falso porque essas cartas de amor — como poemas em prosa — são produções literárias curiosíssimas, onde não falta mesmo uma carta do alter-ego Álvaro de Campos a dizer, em Setembro de 1929, à namorada de Pessoa que “o deite para a pia” (onde os porcos manducam).

Pessoa declara o seu amor a Ofélia com as mesmas palavras de Shakespeare no Hamlet para a sua Ofélia. Esta relação não é do princípio ao fim um caso não apenas afectivo mas também literário? Responda o leitor, quase apetece dizer, copiando o nosso Camilo.

Ofélia aparece também como um anti-heterónimo, personagem real e ao mesmo tempo literária. Não nos digam que estas cartas não têm interesse público e científico para conhecer o homem que produziu uma das obras literárias mais geniais de sempre. A sua vida não desperta em nós o desejo de a ler? De a “ler”?

Desperta e é isso que estamos a fazer, para si. E daqui para a frente vamos perceber porque incluímos Fernando Pessoa nesta séria de artigos sobre os “Rostos da República”.

Os rostos da República: Fernando Pessoa (1)


Almada Negreiros é a ponte simples que utilizamos para começar a falar dos quatro maiores poetas portugueses do século XX: Fernando António Nogueira Pessoa, nascido em Lisboa, a 13 de Junho de 1888, mais conhecido como Fernando Pessoa.

Os quatro maiores poetas portugueses são um, afinal? Sim e só é estranho este sim para quem não conheça este fenómeno literário, mais insólito ainda se soubermos que Fernando Pessoa apenas publicou um livro de versos em português: Mensagem, com 44 poemas, em 1934.

Pessoa, já na sepultura surpreendeu o mundo não só por ter deixado muita poesia inédita mas também por ser o criador de vários poetas desconhecidos, e ainda de vários prosadores.

Os três nomes de poetas, juntamente com o nome que recebeu no baptismo, formam um quarteto assombroso que transformou a literatura portuguesa, europeia e mesmo mundial. Álvaro de Campos, foi revelado em 1915, Ricardo Reis aparece nove anos depois e, por último, Alberto Caeiro, no ano seguinte, em 1925.

É considerado um dos maiores poetas da Língua Portuguesa, e da Literatura Universal, muitas vezes comparado com Luís de Camões. O crítico literário Harold Bloom considerou a sua obra um "legado da língua portuguesa ao mundo".

Por ter sido educado na África do Sul, para onde foi aos seis anos em virtude do casamento de sua mãe, Pessoa aprendeu perfeitamente o inglês, língua em que escreveu poesia e prosa desde a adolescência. 
 
Das quatro obras que publicou em vida, três são na língua inglesa. Fernando Pessoa traduziu várias obras inglesas para português e obras portuguesas (nomeadamente de António Botto e Almada Negreiros) para inglês.

Ao longo da vida trabalhou em várias firmas comerciais de Lisboa como correspondente de língua inglesa e francesa. 
 
Foi também empresário, editor, crítico literário, jornalista, comentador político, tradutor, inventor, astrólogo e publicitário, ao mesmo tempo que produzia a sua obra literária em verso e em prosa. 
 
Como poeta, desdobrou-se em múltiplas personalidades conhecidas como heterónimos, objecto da maior parte dos estudos sobre sua vida e sua obra. Centro irradiador da heteronímia, auto-denominou-se um "drama em gente".

Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples. 
Tem só duas datas — a da minha nascença e a da minha morte. 
Entre uma e outra todos os dias são meus” 
(cf. Alberto Caeiro; Poemas Inconjuntos; in Atena nº 5 de Fevereiro de 1925.

A 13 de Junho de 1888 nasce em Lisboa Fernando Pessoa, numa família da pequena aristocracia, pelos lados paterno e materno; o pai, Joaquim de Seabra Pessoa (38 anos), de Lisboa, era funcionário público do Ministério da Justiça e crítico musical do «Diário de Notícias». A mãe, D. Maria Magdalena Pinheiro Nogueira Pessoa (26 anos), era dos Açores (da Ilha Terceira). Viviam com eles a avó Dionísia, doente mental, e duas criadas velhas, Joana e Emília.

Fernando António foi baptizado em 21 de Julho na Basílica dos Mártires, ao Chiado, tendo por padrinhos a Tia Anica Luísa Pinheiro Nogueira, tia materna, e o General Chaby. A escolha do nome homenageia Santo António: a família reclamava uma ligação genealógica com Fernando de Bulhões, nome de baptismo de Santo António, festejado em Lisboa a 13 de Junho, dia em que Fernando Pessoa nasceu.

As suas infância e adolescência foram marcadas por factos que o influenciariam posteriormente. Às cinco horas da manhã de 24 de Julho de 1893, o pai morreu, com 43 anos, vítima de tuberculose. 

Fernando tinha apenas cinco anos. O irmão Jorge faleceu no ano seguinte, sem completar um ano. A mãe vê-se obrigada a leiloar parte da mobília e muda-se para uma casa mais modesta. 

Foi neste período que surgiu o primeiro heterónimo de Fernando Pessoa, Chevalier de Pas, facto relatado pelo próprio a Adolfo Casais Monteiro, numa carta de 1935, em que fala sobre a origem dos heterónimos. 

Ainda no mesmo ano, escreve o primeiro poema, um verso curto com a infantil epígrafe de À Minha Querida Mamã. A mãe casa-se pela segunda vez em 1895 por procuração, na Igreja de São Mamede, com o comandante João Miguel Rosa, cônsul de Portugal em Durban (África do Sul). 

Em África, onde passa a maior parte da juventude e recebe educação inglesa, Pessoa demonstra desde cedo talento para a literatura.

Faz a instrução primária na escola de freiras irlandesas da West Street, onde fez a primeira comunhão, e percorre em dois anos o equivalente a quatro.

Em 1899 ingressa no Liceu de Durban, onde permanece três anos e será um dos primeiros alunos da turma e cria o pseudónimo Alexander Search, através do qual envia cartas a si mesmo. 

No ano de 1901, escreve os primeiros poemas em inglês. Na mesma altura, morre a irmã Madalena Henriqueta, de dois anos. Em 1901 parte com a família para Portugal, para um ano de férias. No navio em que viajam, o paquete König, vem o corpo da irmã.

Na capital portuguesa, nasce João Maria, quarto filho do segundo casamento da mãe de Pessoa. Viaja com a família à Ilha Terceira, nos Açores, onde vive a família materna.
Mantém contacto com a literatura inglesa através de autores como Shakespeare, Edgar Allan Poe, John Milton, Lord Byron, John Keats, Percy Shelley, Alfred Tennyson, entre outros. 

O Inglês teve grande destaque na sua vida, trabalhando com o idioma quando, mais tarde, se torna correspondente comercial em Lisboa, além de o utilizar em alguns dos seus textos e traduzir trabalhos de poetas ingleses, como O Corvo e Annabel Lee de Edgar Allan Poe. 

Com excepção de Mensagem, os únicos livros publicados em vida são os das colectâneas dos seus poemas ingleses: Antinous e 35 Sonnets e English Poems I - II e III, editados em Lisboa, em 1918 e 1921.

Fernando Pessoa permanece em Lisboa, enquanto todos — mãe, padrasto, irmãos e criada Paciência — regressam a Durban. Volta sozinho para a África e matricula-se na Durban Commercial School, escola comercial de ensino nocturno, e de dia estuda as disciplinas humanísticas para entrar na universidade. 

Em 1903, candidata-se à Universidade do Cabo da Boa Esperança. Na prova de exame de admissão e tira a melhor nota entre os 899 candidatos no ensaio de estilo inglês. Recebe o Queen Victoria Memorial Prize («Prémio Rainha Vitória»). 
 

Deixando a família em Durban, regressa definitivamente à capital portuguesa, sozinho, em 1905. Passa a viver com a avó Dionísia e as duas tias. 
 
Continua a produção de poemas em inglês e, em 1906, matricula-se no Curso Superior de Letras (actual Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa), que abandona sem sequer completar o primeiro ano. Interessa-se pela obra de Cesário Verde e pelos sermões do Padre António Vieira.

Em Agosto de 1907, morre a sua avó Dionísia, deixando-lhe uma pequena herança, com a qual monta uma pequena tipografia, «Empreza Ibis — Typographica e Editora — Officinas a Vapor», que vai à falência. 

A partir de 1908, dedica-se à tradução de correspondência comercial, uma ocupação a que poderíamos dar o nome de "correspondente estrangeiro". Nessa actividade trabalha a vida toda, tendo uma modesta vida pública.

Inicia a sua actividade de ensaísta e crítico literário com o artigo «A Nova Poesia Portuguesa Sociologicamente Considerada», a que se seguiriam «Reincidindo…» e «A Nova Poesia Portuguesa no Seu Aspecto Psicológico» publicados em 1912 pela revista A Águia, órgão da Renascença Portuguesa.

Frequenta a tertúlia literária que se formou em torno do seu tio adoptivo, o poeta, general aposentado Henrique Rosa, no Café A Brasileira, no Largo do Chiado em Lisboa. Mais tarde, já nos anos vinte, o seu café foi o Martinho da Arcada, na Praça do Comércio, onde escrevia e se encontrava com amigos e escritores.

Em 1915 participou na revista literária Orpheu, a qual lançou o movimento modernista em Portugal, causando algum escândalo e muita controvérsia. Esta revista publicou apenas dois números, nos quais Pessoa publicou em seu nome, bem como com o heterónimo Álvaro de Campos. No segundo número da Orpheu, Pessoa assume a direcção da revista, juntamente com Mário de Sá-Carneiro.

Em Outubro de 1924, juntamente com o artista plástico Ruy Vaz, Fernando Pessoa lançou a revista Athena, na qual fixou o «drama em gente» dos seus heterónimos, publicando poesias de Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, bem como do ortónimo Fernando Pessoa.

Morreu no dia 30 de Novembro, com 47 anos de idade. Na véspera escreve em inglês: "I know not what tomorrow will bring" ("Não sei o que o amanhã trará").

Os rostos da República: OLiveira Salazar (7)

Obcecada pela ordem, pela poupança e pelo controlo rigoroso da economia doméstica, a mãe, na sua casa de comes e bebes, ela constitui a principal influência familiar sobre o seu filho António, sendo sua conselheira e orientadora. 

É por obediência a ela – Maria do Resgate - que António segue para o Seminário de Viseu porque, nas aldeias, “ser padre significa promoção social e fuga à endémica miséria nacional”. 


Viseu fecha-lhe o caminho do sacerdócio e abre o caminho para outras ambições. Ele detestava ser o filho do feitor… e por causa disso abandona o primeiro amor  e acolhe-se à sombra do amigo Manuel Cerejeira.

Imposta a ditadura militar em 28 de Maio de 1926, contra a deriva de uma república exausta, o nome de Oliveira Salazar enquadra-se no perfil do movimento que saiu de Braga, com o general Gomes da Costa à cabeça.

Este nomeia três lentes para o governo a liderar por Alves Cabeçadas: Salazar nas Finanças, Remédios na instrução e Rodrigues na Justiça. “Foi o que se pôde arranjar num momento destes. O ministro das finanças é um tal Salazar de Coimbra. Dizem que é muito bom”.

Calculista, Salazar olha à sua volta e decide dizer não mas apos insistências vária, aceita o cargo a fim de uma semana.

Cabeçadas é afastado alguns dias apos por demasiadas cumplicidades com os republicanos e os três lentes de Coimbra acompanham-no. Segue-se novo momento de intranqüilidade com a deportação de Gomes da Costa para os Açores, subindo Oscar Carmona à chefia do Estado.

Para acompanhar a agonia da mãe, António Salazar mantém-se em Coimbra mas não se fasta da política, escrevendo no jornal Novidades um série de artigos que desmantelam a política financeira em vigor.

A incapacidade de conter os gastos do Estado, o défice camuflado das contas públicas são os tópicos destes artigos que vislumbram um programa de governo até porque “por detrás daquela frieza estava uma ambição insaciável. És um vulcão de ambições” – escreveu o padre Mateo Crawley, apos alguns dias de convívio com  Salazar, a convite do cardeal Cerejeira.

Em Meados de Abil de 1928 surge nova oportunidade e Oliveira Salazar resiste e o Governo é empossado sem ele. Duarte Pacheco vai a Coimbra e convence-o a aceitar o cargo de ministro das Finanças, impondo um preço elevado: todos os ministérios aceitam condicionar os seus gatos à verba atribuída pelo Ministério das Finanças.

Começa assim aquilo a que chamaram a ditadura das finanças, conquistando tal força dentro do governo que as suas idéias se alastram aos outros sectores do Governo e à política nacional.

O Governo assumia a prioridade do problema financeiro, secundarizando o económico, desprezando o social e evitando o político.
Com a protecção de Carmona, os primeiros ministros mudam mas Oliveira Salazar mantém-se, somando êxitos no saneamento das contas públicas com a forma radical de não gastar mais do que se produz.

Salazar é também o ministro que resolve os casos complicados, centralizando o poder sobre as colônias em Lisboa, através do Acto Colonial.

Salazar subia os degraus necessários a ser nomeado primeiro ministro no Verão de 1932, sem qualquer reticência sua parte. 

Começa a saga do filho do feitor de Santa Comba Dão que todos conhecemos.

Thursday, January 24, 2013

Os rostos da República: OLiveira Salazar (6)


Em 1918 ele encontra-se entre o grupo de professores que saúdam Sidónio Pais, na sua visita presidencial a Coimbra, aventando-se a hipótese de ser ministeriável. 

Coincide com o início de uma relação platónica com Glória Castanheira, pianista célebre de Coimbra, mas esta acaba por sofrer também com a tibieza de António. Os colegas acusam-nos de basear a sua atracção pelas mulheres apenas no espírito.

Mas o pior acontece quando é acusado de proselitismo monárquico e acaba suspenso da docência, mas Salazar defende-se de forma arrasadora e o juiz reintegra-o ao fim de um mês por nada se haver provado contra ele.

Fala-se então na sua candidatura pelo Centro Católico Português por Viana do Castelo, mas acaba por ser apontado para representar Guimarães, contra sua vontade.

Provedor da Misericórdia de Coimbra, António Salazar regressa a nova depressão, porque a sua ida para Lisboa era uma “revolução na minha vida, nos meus hábitos e (…) tira-me o relativo sossego do meu viver apagado e a distracção dos meus livros. Começo a sentir que não hei-de ser nada – nem professor, nem deputado, nem provedor da Misericórdia – nada a não ser uma pessoa cuja vontade se violentou”.

Numa carta à pianista, escreve: “não sinto entusiasmo por nada. Estou morto”. Despede-se de Lisboa nas férias de Verão e em 19 de Outubro de 1921 acontece a “Noite sangrenta” que põe fim à experiência parlamentar de Salazar.

A sua reputação como ideólogo do CCP afirma-se em Abril de 1922 quando define como prioridade dos católicos “conquistar no regímen actual as liberdades fundamentais da Igreja” em detrimento da Monarquia ou da República.

Aos 33 anos, Salazar não é um desconhecido, mas um académico respeitado e apontado como detentor da solução para a bancarrota nacional. Sem pressa, o lente de Coimbra dedica-se a palestras para os círculos católicos, como Braga, no Congresso Eucarístico de 1924, e a escrever artigos para jornais refugiando-se no Vimieiro, onde a mãe precisa dos seus cuidados.

Continua a namoriscar, agora com a vizinha, com quem troca cúmplices olhares de janela para janela. É a Júlia Alves Moreno, irmão do seu amigo Guilherme. Manuel Cerejeira reprova o comportamento e ele responde: “que queres? Ela é que me provoca, é que toma a iniciativa, e eu não sou frade”.

A sua carreira política sofre um desaire ao falhar a eleição como deputado por Arganil, em 1925, mas meio ano depois, a revolta militar saída de Braga, em 28 de Maio de 1926, vai mudar toda a vida daquele de quem a mãe disse à sua primeira namorada: “o meu filho é só meu”. 

Obcecada pela ordem, pela poupança e pelo controlo rigoroso da economia doméstica, na sua casa de comes e bebes, ela constitui a principal influência familiar sobre o seu filho António, sendo sua conselheira e orientadora. 

É por obediência a ela – Maria do Resgate - que António segue para o Seminário de Viseu porque, nas aldeias, “ser padre significa promoção social e fuga à endémica miséria nacional”. 

Viseu fecha-lhe o caminho do sacerdócio e abre o caminho para outras ambições. Ele detestava ser o filho do feitor… e por causa disso abandona o primeiro amor e acolhe-se à sombra do amigo Manuel Cerejeira.




Os rostos da República: OLiveira Salazar (5)

O Jovem entra na universidade alguns dias apos a revolução de Outubro, começando por se matricular em Letras mas depressa se muda para Direito, aproveitando-se de algumas facilidades concedias pelos republicanos para completar cadeiras mais depressa que o normal. 

Recuperava tempo perdido de forma merecida a avaliar pelos prémios que recebe por decisão unânime de jurados catedráticos.

A luta ideológica em Coimbra é intensa e não deixa ninguém indiferente, fazendo com que Salazar alinhe pelo seu campo de sempre, o conservador, através da militância no Centro Académico da Democracia Cristã. 

Ao lado dele está o famalicense Manuel Gonçalves Cerejeira, um ano mais velho. A emotividade de Cerejeira mistura-se com a serenidade de Salazar e à exuberância daquele este responde com discrição e se Manuel é discreto, o António é impenetrável. Encaixam-se em tudo o resto, tornando-se companheiros de combate e amigos íntimos.

Cerejeira dirige o “Imparcial”, um aguerrido jornal de combate contra o anticlericalismo republicano, mas Salazar prefere não se misturar nessa dicotomia república/monarquia, escrevendo dezenas de artigos para o jornal sobre o ensino e questões universitárias.

As elevadas notas de Salazar – entre o18 e o 19 – fazem sensação em Coimbra e a fama atrai muitas atenções femininas que o acompanham nas férias de Verão, para desespero de Felismina, em perda de terreno, porque ele lhes “correspondia com bastante satisfação”.

Para reforçar a sua magra mesada, dava explicações e entre as explicandas encontra-se Júlia Perestrello, filha da sua madrinha, a frequentar um colégio de freiras.

Doutrinador respeitado nas fileiras do catolicismo militante, Salazar compõem em 1912 a tetralogia dos seus sagrados valores: “Deus, Pátria, Liberdade e Família”. 

Um ano depois, em Braga, aborda a relação entre democracia e Igreja, esquecendo a Liberdade que celebrara antes. “Deve mandar quem sabe e quem pode”, dentro da livre opção da sociedade civil pelo sistema político que considere mais apropriado porque “não nos é possível, em nome do Evangelho, aclamar a Monarquia ou detestar a República”. Alexis de Tocqueville ou Charles Maurras não fariam melhor discurso para o combate nacionalista contra o cosmopolitismo republicano.

O ano de 1914 marca a viragem definitiva na vida de António Salazar, com um feito notável na nota final da licenciatura de “muito bom, com distinção e dezanove valores”.

O sucesso escolar não o livra da recorrente depressão que o obriga a refugiar-se no seu quarto sem ver a luz do dia, até aceitar o conselho do amigo Manuel Cerejeira para se recolher num convento, com ele.

Inicia-se então uma fulgurante carreira académica como professor de Ciências económicas e financeiras, tornando-se figura influente do partido do Centro Católico Português (CCP), fundado em 1917, de modo a permitir aos católicos uma intervenção política. 

Está a chegar o sidonismo…

Os rostos da República: OLiveira Salazar (4)

É linda esta fase da vida do António, como descreve Felismina, a propósito do encontro em Viseu: “Eu tinha as mãos atrás das costas; ele foi-mas lá buscar, apertou-mas muito e, em seguida, colocou uma delas entre as minhas. Compreendi e… cedi. Pela primeira vez, apertei intencionalmente a sua mãe, embora com certa leveza. Mais, seria pecado!

O namoro – como sempre, não? – beneficia o desempenho académico de Salazar. 
Excelente aluno nas diversas disciplinas até entrar no curso teológico em 1905, em que se distingue pela avidez da leitura, a entrega à reflexão e resistência intelectual.

Logo no primeiro ano é escolhido para uma sessão na presença do bispo de Viseu, terminando o curso de teologia com distinção e nota final e 16 valores, mas falta-lhe idade para receber as ordens maiores (diácono e presbítero). Os conterrâneos já o tratavam por “padre Salazar”, em 1908.

Vive-se já a euforia republicana, na sequência da morte de D. Carlos, e António publica os primeiros artigos a defender os valores católicos, atacando a imprensa republicana porque inimiga da religião.

Aflora um monarquismo inconfessado, antes de entrar no Seminário de Viseu como prefeito, onde devora a imensa biblioteca do cónego António barreiros, apostado em métodos de ensino mais modernos e aproveita para estudar inglês, alemão e francês.

O Papa Leão XIII, que morrera há pouco, ajuda-o a preparar-se para novos desafios lançados pela Rerum Novarum sobre a questão social. A encíclica condena a luta de classes, os ataques à propriedade privada, o socialismo e comunismo como elementos destruidores da célula sagrada que é a família mas taca também o liberalismo puro como desfavorável aos fracos e desprotegidos. 

Defende a intervenção do Estado para proteger os trabalhadores e estimula a concertação entre patrões e operários para solucionar as questões salariais e condições de trabalho.

Excluindo a greve, está aí todo o programa inspirador do corporativismo que influencia a Europa Latina. 

Em outras encíclicas, Leão XIII condenara a maçonaria como incompatível com os cristianismo, estabelece o conceito de democracia cristã que ele faz evoluir para a necessidade de uma sociedade com um chefe supremo, entre o poder religioso e o político, num sistema de relações bem ordenado.

Mas há algo que não agrada a Salazar: os portugueses. Estes querem “trabalhar o menos possível sob a tutela do estado que lhe garanta o suficiente à vida, eis o sonho, o belíssimo sonho do preguiçoso português”. 

Disse-o com todas as letras em Dezembro de 1909, em Viseu. Salazar sente-se agora mais longe do sonho sacerdotal e inicia a sua carreira académica que a mãe parece favorecer. 

Nas férias de verão de 1910, Felismina, apesar da exasperada inconstância sentimental do António, seduz o namorado com o prestígio local de que ele goza como “rapaz extraordinário e nas famílias onde havia meninas, pensava-se nele com certo interesse”. 

Salazar decide não tomar as ordens maiores e rumar a Coimbra para ingressar na Universidade, quando deflagra a Revolução republicana, com 21 anos.



Os rostos da República: OLiveira Salazar (3)


O primeiro responsável pela desagregação do regime que ele criou, deixa um país que não agrada a ninguém porque interiorizou que devia à Providência “a graça de ser pobre” (cf. Discurso à União Nacional, no Porto, em 1949).

O Camponês, filho de camponeses que não pode viver ”sem respirar o cheiro da terra”, nasce quando os pais – já com quatro filhas – não esperavam ter um filho varão, a 28 de Abril de 1889.

Os seus pais foram um casal camponês e beirão, típico de Portugal monárquico do último quarto do século XIX, em suportável humildade, perto de Santa Comba Dão.

António Oliveira é feitor de uma distinta família de proprietários rurais – os Perestrelos – com terras e outros bens espalhados entre Viseu e Coimbra.

Os Perestrelos são padrinhos e protectores da família, mas não aparecem ao baptizado e fazem representar-se por um carpinteiro de Santa Comba e esposa.
Como não havia escola primária em Vimieiro, é um funcionário municipal quem inicia as crianças nas primeiras letras. 

O pequeno António é pouco sociável, adora flores e pássaros e desata a chorar quando algum dos pintassilgos foge da gaiola, nos tempos livres entremeados com ajuda ao pai nas ides rurais.

Assim, desenvolve pela mãe um carinho ilimitado e esta responde com afeição interessada na educação do benjamim da família. Os 14 valores conseguidos no exame de quarta classe confirmam o talento do menino que é enviado para Viseu, o Liceu mais próximo mas longe da mãe. 

É uma flor de estufa, indefesa perante as brincadeiras dos colegas. O pároco sugere uma solução, ir para o seminário e formar um futuro sacerdote, porque é metódico, aplicado e cumpridor.

Passa sempre com distinção em várias disciplinas mas não descura o secreto e correspondido amor com Felismina Oliveira, a acabar o liceu e apontada como futura professora.

Felismina dá explicações à irmã mais velha de Salazar, Mata, também a estudar para professora, e ficaram, um dia, na estação do comboio de Viseu, “uns instantes, de olhos nos olhos, estáticos, talvez ávidos de nos conhecermos pessoalmente um ao outro…

Ela e Marta visitam o António no Seminário, muito pálido, moreno, magrinho e alto, que comia pouco. Elas levavam-lhe “castanhas assadas e marmelada”. 

Seguem-se encontros na casa da Felismina onde a Marta estava hospedada ate quem uma carta a vai perturbar: “A vida de um lavrador é a mais bela. Andar a trabalhar nos campos, regressar à tarde a casa e encontrar os braços da esposa à sua espera é… é mudar esta vida num Paraíso e vós podeis mudá-la”. 

Sublinhadas as três últimas palavras, Felismina vive uma paixão hesitante e desorientada por temer a ira divina de andar a desorientar um futuro padre.

Nas férias, Felismina não evitava passeios em que “segurava a minha mão na dele, enlaçava-me pela cintura e seguíamos assim os dois como se fôssemos um par de namorados”.




Os rostos da República: Oliveira Salazar (2)

Como qualquer boa dona de casa, cultiva a modéstia pública (carapaça de uma vaidade e orgulho interiores indisfarçáveis), a origem humilde, com agradecimento à “providência”, a força de vontade, o celibato e a rectidão (desmentida para abafar a sua responsabilidade na morte do oposicionista Humberto Delgado, trazendo-o para o nível do cinismo político que condenava nos outros).
 
Julga-se dotado do dom especial da governação que exerce como despotismo esclarecido, através de um conjunto de verdades absolutas e inquestionáveis para levar a nação à glória sobre as quais discursava de forma impressionante para Marcelo Caetano.

Já na Juventude confessara ao amigo Cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira: “nunca nenhum médico perguntou a um doente o remédio que ele deseja tomar, mas apenas o que é que lhe dói”.

Este princípio serve perfeitamente a alguém que olhava para os portugueses e os definia como "excessivamente sentimentais, com horror à disciplina, individualistas sem dar por isso, falhos de espírito de continuidade e de tenacidade de acção”.

Um povo assim não podia nunca cumprir a “vocação do heroísmo, do desinteresse, da acção civilizadora, da grandeza imperial” que necessita de uma “vasta obra de educação política que lhe devolva a consciência da grandeza e da missão providencial da Nação”.

Daí que a “democracia orgânica” dele não passa de um mecanismo construído para o exercício do seu poder absoluto, numa “ascensão dolorosa dum calvário. No cimo podem morrer os homens, mas redimem-se as pátrias” – repete Salazar, desde o início, para que não restem dúvidas.

Na realidade, é a Nação que lhe interessa, não quem a constitui.
Digam lá que, mesmo hoje, um governante assim secreto, distante, reservado, monástico, determinado e altruísta não desenha um perfil capaz de fascinar e congregar a admiração de muitos? E o terreno político era extremamente favorável aos novos ventos do homem de Santa Comba Dão, a quem não devemos honestamente retirar mérito. Ele consegue o primeiro orçamento positivo na década de vinte, abrindo-se-lhe as portas da Chefia do Governo de um país que lhe deve a paz enquanto ao lado estalam duas guerras de uma assentada: a civil de Espanha e a II Mundial.

É o suficiente para uma credibilidade inabalável de modo que os portugueses obedecem até ao fim ao seu mando. Salazar não se confunde apenas com o Estado, ele é o Estado. Controla tudo como se fosse uma economia doméstica, passa a pente fino todos os diplomas e chama a si pelouros sensíveis como os da propaganda, da censura e da polícia política. Lê todas as cartas que recebe e chega a responder a missivas particulares e de crianças, comovendo-se com dramas pessoais que ajuda a resolver.

Onde fica a liberdade no meio de tudo isto?

Salazar dá com uma mão e tira coma outra. Quando defende um “Estado forte, mas limitado pela moral, pelos princípios do direito das gentes, pelas garantias e liberdades individuais” acrescenta-lhe os limites da “integridade política e jurídica do Estado em face de todas as limitações que possam vir-lhe do individualismo e do internacionalismo”.

Acresce que toda a sua acção invoca a segunda parte e esquece a primeira, de tal modo a que a opinião é delito contra a segurança do Estado e alguns chegam a ser punidos com a morte.

INFINDÁVEL DISCUSSÃO

Assim, torna-se autoritário, nacionalista e incapaz de participar num debate ou de dar uma conferência de imprensa. Começa aqui a infindável discussão: foi ou não fascista?

Ele não se assume como tal mas promove práticas fascistas com as milícias, a militarização juvenil, os desfiles marciais e a saudação romana que desaparecem após a derrota daqueles regimes e não por vontade própria porque Salazar assume-se então como mais homem de acção do que teórico – o que o afasta do fascismo.

Por isso, defende um país bucólico, paroquial e isolado em que a escolaridade não é prioritária com medo de um povo culto.

Lutarei sempre contra a independência das mulheres casadas” – declara solenemente na década de 50, associando esta ideia ao combate aos nacionalismos que batem às portas do império colonial.

A guerra colonial que ele não sabe ou não quer evitar faz soçobrar todo o seu sistema político, mas ninguém o pode acusar de incoerente, apesar de se julgar imortal e insubstituível. 

Daí que não tenha preparado a sucessão e se torne o primeiro responsável pela desagregação do regime que ele criou. Ele deixa um país que não agrada a ninguém com uma marca profunda que o faz amado ou odiado mas inesquecível.

Os rostos da República: Manuel Cerejeira (11)


O último ano de Salazar no Poder foi também um annus horribilis para Cerejeira, a completar 80 anos. Teve de enfrentar as duras críticas de Raul Rego, D. António Ferreira Gomes e de cada vez mais sacerdotes rebeldes e lidar com a crescente hostilidade dos católicos perante a guerra colonial.

Anunciava-se, em 1968, o crepúsculo da dupla de «amigos» que marca a vida portuguesa durante quatro décadas. De pouco lhe valera ter afirmado, no seu testamento, que “não tive outro grande amor na minha vida, além de Deus, da Igreja e da minha diocese” nem mereceu aquilo que mais gostava de ser: “um bispo que amou o seu clero”.

Uma das suas últimas grandes mágoas foi vivida em S. Paulo, na Universidade Católca através de uma conferência muito crítica sobre as suas relações com o salazarismo, enviada de Portugal por um sacerdote, cujo nome foi mantido em segredo.

A conferência destacava o seu silêncio face ao "assassínio de Humberto Delgado em 1965, à Guerra e aos maus tratos infligidos nas  cadeias”. Como se isso não bastasse, um grupo de professores daquela Universidade pedia a sua influência para levar o governo português a pôr fim às guerras coloniais “que ensanguentam as suas colónias africanas e restituir à liberdade aqueles que se acham encarcerados por delitos de opinião”.

No final de Agosto de 1968, uma queda forçava o amigo da “fogueira antiga” a ser operado de urgência a um hematoma craniano, determinando a sua incapacidade para governar.

A transição do poder para Marcelo Caetano apanha o Cardeal desprevenido e ocupado a resolver a contestação interna, despoletada no Seminário dos Olivais e resolvida com a criação da Universidade Católica, para onde transferiu muitos dos alunos.

Ao mesmo tempo, Manuel Cerejeira lidava, com extrema dificuldade, com o caso do Padre Felicidade Alves, seu amigo pessoal mas influenciado doutrinariamente pelo bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, tornando-se alvo de atenção da PIDE.

O padre Felicidade Alves, “exilado em Paris”, envia aos portugueses uma carta que “denunciava o conluio da Igreja com os poderosos”,  reivindicava a Justiça social e propunha uma “mutação rápida e total das estruturas vigentes, jurídicas, económicas, sociais, políticas, culturais e a instauração de uma ordem radicalmente nova” (cf. NOGUEIRA, Franco, Um político confessa-se, Porto, Ed. Civlização, 1986, p.345).

O Cardeal lamenta a extensão do mal causado pelo escândalo “nas consciências, desprestigiando a Igreja, quebrando a unidade com o bispo, dividindo o clero e envenenando o incidente puramente eclesiástico de caluniosas intenções e influências políticas”.

O drama interior do Cardeal era tal que Salazar terá confessado a Franco Nogueira que o Patriarca "ainda havia de morrer por causa do padre Felicidade” que o Cardeal acaba por remover e suspender a divinis das funções sacerdotais, a menos que se retractasse.

No meio destas tristezas, uma enorme alegria é vivida pelo Cardeal com a abertura da Universidade Católica Portuguesa, em fins de 1968.

A crise, no entanto, estava instalada no seio da Igreja, com manifestações de leigos e o definhamento da Acção Católica face ao silêncio do Patriarca sobre onze padres angolanos exilados em Portugal sem culpa formada, a saída de sacerdotes do país perseguidos pela PIDE, as duas prisões do padre Mário Oliveira, na Lixa, a retirada de Moçambique dos padres brancos que denunciaram o massacre de Wiriamu.

O regime foi surpreendido com a escolha de D. António Ribeiro para suceder ao “cardeale bambino”  a 29 de Julho de 1971. Recolhe-se então na Buraca, na Casa do Bom Pastor, aquele que considerava Teófilo Braga “um anti-clerical a frio, saturado de preconceitos contra a Igreja” e Camilo Castelo Branco “um infeliz, cheio e contradições".

Faleceu a 1 de Agosto de 1977, aos 89 anos, num Portugal que não era aquele em que viveu. No funeral, apareceram o seu antigo adversário Raúl Rego e Mário Soares oferendo-lhe a última lição.

Teminava a passagem de uma figura ambígua enfeudada ao sistema ditatorial legitimadora dos desmandos do seu amigo António a quem bateu o pé quando se tratava da Liberdade e Independência da Igreja.

Os rostos da República: Oliveira Salazar (1)


Deve o Estado ser tão forte que não precise de ser violento” – este é o princípio fundamental da revolução política liderada por António de Oliveira Salazar que se viveu em Portugal entre 1926 e 1974.

Quem diria que este lema – desvirtuado umas tantas quantas vezes – marcou a vida e acção política de uma personalidade que, na aurora do século XXI, constitui ainda uma sombra difusa sobre o pensamento popular de Portugal.

É verdade que as suas ideias antidemocráticas não têm seguidores pelo que se desvaneceu qualquer nostalgia da sua época mas há uma vontade latente de regressar ao seu estilo de fazer política, mas o país já não está isolado nem é provinciano que possa aceitar este paternalismo corporativista e messiânico que servia de base aos seus conceitos de Governo.

No entanto, para desgraça dos que construíram a democracia e deram a vida pela liberdade, a memória de António Oliveira Salazar não se evaporou da consciência colectiva, apesar de todos os discursos durante os últimos 38 anos.

Recentemente, um inquérito realizado pela RTP, colocava António Oliveira Salazar no pódium dos três portugueses mais influentes do século XX, independentemente do juízo que se faz do político e do estadista. Para o bem e para o mal, Salazar é uma referência portuguesa, difícil de apagar da galeria dos filhos ilustres desta nação octocentenária.

Porquê? Em primeiro lugar, porque ele governou durante 40 anos, chegando a estar no Livro dos Recordes Guiness. Queiramos ou não, foi quase meio século da história recente de Portugal, envolveu duas gerações, com um poder intenso que abarcava quase todos os aspectos da vida dos cidadãos.

Mas existem outras razões, uma vez que ele não abandonou o poder por qualquer movimento popular e muito menos por um golpe de força, mas por incapacidade física.

Uma das razões reside no facto de António Oliveira Salazar se confundir com o meio onde nasceu – rural, conservador, católico, tradicionalista, pobre mas remediado – e que representa a maioria da população portuguesa, da qual surge como representante.

Assim, ele olha para os políticos da República, os seus partidos e os deputados com sobranceria, desconfiança, uma vez que são cosmopolitas, ambiciosos, egoístas, oportunistas, palavrosos, demagógicos, sedentos de poder, desonestos intelectualmente, alheios ao interesse nacional e delapidadores do bem comum.

Ele representava “uma política de verdade e de sinceridade, contraposta a uma política de mentira e de segredo”.

Por isso, mostra-se relutante quando o chamam para o poder e quando aceita rompe com o passado e impõe um padrão de austero e abnegado serviço público. Esta atitude, de desarmante simplicidade, aponta para o modelo de “qualquer boa dona de casa – política comezinha e modesta que consiste em se gastar bem o que se possui e não se despender mais do que os próprios recursos” (como escreve Joaquim Vieira, in António Oliveira Salazar, Ed. Círculo de Leitores, Lisboa, 2001, pp. 8 a14).