Fernando Pessoa foi "o
enigma em pessoa" e foram necessários
55 longos anos para estudar e descobrir toda a sua obra, graças ao
trabalho incansável de Teresa Rita Lopes, plasmado em “Pessoa por
conhecer”.
É esta investigadora que
nos demonstra que Fernando Pessoa não inventou três, nem dez, nem
trinta personagens escritores, mas mais de 70 – assegura Richard
Zenith, um especialista americano premiado em traduções pessoanas
que levaram este escritor português a todo o mundo.
De facto, o conjunto de
inéditos que foram divulgados após a sua morte em 1935 ultrapassa
todas as expectativas, pela quantidade e pela qualidade mas também
pela grande variedade de temas, géneros e estilos.
Ninguém esperava que
aquele que começou a idealizar o “Livro do Desassossego” há cem
anos tivesse tantos bilhetes de identidade fictícios (ou reais?),
para além dos mais conhecidos Caeiro, Campos, Reis ou Bernardo
Soares.
João Gaspar Simões
descobrira, 15 anos após a sua morte, alguns heterónimos ingleses,
cuja extensa obra só começou a ser divulgada em 1960, década em
que se conheceram o barão de Teive (aristocrata que se suicida) e
Rafael Baldaia (esse astrólogo que gostava de filosofia).
Teresa Rita Lopes
descobriu também que os vários nomes de Pessoa dialogavam entre si,
comentavam-se criticando, acaloradamente, para além de perceber que
as estrelas do universo pessoano não eram fixas porque se moviam e
se influenciavam mutuamente.
Perante a vastidão deste
universo, descobrimos novos poemas, novas facetas literárias e novos
nomes que fazem deste vanguardista que abalou o pacato meio cultural
português um escritor único no mundo.
Deixou-nos dois mil e
quinhentos papéis numa arca de madeira, a prova de uma vida com
muita substância e muita emoção.
“Quanto em mim haja de
humano eu o dividi entre os autores vários de cuja obra tenho sido o
executor” – escreveu Fernando Pessoa, numa primeira tentativa de
explicar os heterónimos, ao ponto de Álvaro de Campos chegar a
escrever que “Fernando Pessoa não existe, propriamente falando”.
Outro é o caso do Livro
do Desassossego, cujo embrião celebra este
ano cem anos, apresentando pensamentos e sentimentos pertencentes a
Pessoa mas narrados por Bernardo Soares, um simples ajudante de
guarda-livros que trabalhava e vivia na rua dos Restauradores…
É nesse livro que Pessoa
escreve (perdão, Bernardo Soares): “A minha vaidade são algumas
páginas, uns trechos, certas dúvidas…”
Mas é aí que ele
desmonta a imagem cliché que chegou até hoje de si próprio: um par
de óculos, um bigode e uma gabardina, sem corpo, sem amor físico,
sexual e quase nenhum desejo. Pessoa não era “um homem sem
qualidades mas um conjunto de qualidades sem homem”.
Falsamente nos
transmitiram isto porque Pessoa “era um homem social e sexual como
os outros, com uma vida quotidiana rica em acontecimentos, prazeres,
dores e esperanças” mas sempre foi “tímido, reservado e
resolutamente privado” (cf. ZENITH, RICHARD, in Fernando Pessoa,
Circulo de Leitores, Lisboa, 2008, pp. 8-16).
Onde acaba a obra pública,
publicável e começa o homem privado? Em Pessoa é quase impossível
separar as duas facetas.
Quando, em 1978, foram
publicadas as cartas de amor que Pessoa escreveu á sua única
namorada, Ofélia Queirós, algumas pessoas pensaram que era uma
depredação. Nada mais falso porque essas cartas de amor — como
poemas em prosa — são produções literárias curiosíssimas, onde
não falta mesmo uma carta do alter-ego Álvaro de Campos a dizer, em
Setembro de 1929, à namorada de Pessoa que “o deite para a pia”
(onde os porcos manducam).
Pessoa declara o seu amor
a Ofélia com as mesmas palavras de Shakespeare no Hamlet para a sua
Ofélia. Esta relação não é do princípio ao fim um caso não
apenas afectivo mas também literário? Responda o leitor, quase
apetece dizer, copiando o nosso Camilo.
Ofélia aparece também
como um anti-heterónimo, personagem real e ao mesmo tempo literária.
Não nos digam que estas cartas não têm interesse público e
científico para conhecer o homem que produziu uma das obras
literárias mais geniais de sempre. A sua vida não desperta em nós
o desejo de a ler? De a “ler”?
Desperta e é isso que
estamos a fazer, para si. E daqui para a frente vamos perceber porque
incluímos Fernando Pessoa nesta séria de artigos sobre os “Rostos
da República”.
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