Friday, January 25, 2013

Os rostos da República: Fernando Pessoa (2)

 
Fernando Pessoa foi "o enigma em pessoa" e foram necessários 55 longos anos para estudar e descobrir toda a sua obra, graças ao trabalho incansável de Teresa Rita Lopes, plasmado em “Pessoa por conhecer”.

É esta investigadora que nos demonstra que Fernando Pessoa não inventou três, nem dez, nem trinta personagens escritores, mas mais de 70 – assegura Richard Zenith, um especialista americano premiado em traduções pessoanas que levaram este escritor português a todo o mundo.

De facto, o conjunto de inéditos que foram divulgados após a sua morte em 1935 ultrapassa todas as expectativas, pela quantidade e pela qualidade mas também pela grande variedade de temas, géneros e estilos.

Ninguém esperava que aquele que começou a idealizar o “Livro do Desassossego” há cem anos tivesse tantos bilhetes de identidade fictícios (ou reais?), para além dos mais conhecidos Caeiro, Campos, Reis ou Bernardo Soares.

João Gaspar Simões descobrira, 15 anos após a sua morte, alguns heterónimos ingleses, cuja extensa obra só começou a ser divulgada em 1960, década em que se conheceram o barão de Teive (aristocrata que se suicida) e Rafael Baldaia (esse astrólogo que gostava de filosofia).

Teresa Rita Lopes descobriu também que os vários nomes de Pessoa dialogavam entre si, comentavam-se criticando, acaloradamente, para além de perceber que as estrelas do universo pessoano não eram fixas porque se moviam e se influenciavam mutuamente.

Perante a vastidão deste universo, descobrimos novos poemas, novas facetas literárias e novos nomes que fazem deste vanguardista que abalou o pacato meio cultural português um escritor único no mundo.

Deixou-nos dois mil e quinhentos papéis numa arca de madeira, a prova de uma vida com muita substância e muita emoção.

Quanto em mim haja de humano eu o dividi entre os autores vários de cuja obra tenho sido o executor” – escreveu Fernando Pessoa, numa primeira tentativa de explicar os heterónimos, ao ponto de Álvaro de Campos chegar a escrever que “Fernando Pessoa não existe, propriamente falando”.

Outro é o caso do Livro do Desassossego, cujo embrião celebra este ano cem anos, apresentando pensamentos e sentimentos pertencentes a Pessoa mas narrados por Bernardo Soares, um simples ajudante de guarda-livros que trabalhava e vivia na rua dos Restauradores…

É nesse livro que Pessoa escreve (perdão, Bernardo Soares): “A minha vaidade são algumas páginas, uns trechos, certas dúvidas…” 

Mas é aí que ele desmonta a imagem cliché que chegou até hoje de si próprio: um par de óculos, um bigode e uma gabardina, sem corpo, sem amor físico, sexual e quase nenhum desejo. Pessoa não era “um homem sem qualidades mas um conjunto de qualidades sem homem”.

Falsamente nos transmitiram isto porque Pessoa “era um homem social e sexual como os outros, com uma vida quotidiana rica em acontecimentos, prazeres, dores e esperanças” mas sempre foi “tímido, reservado e resolutamente privado” (cf. ZENITH, RICHARD, in Fernando Pessoa, Circulo de Leitores, Lisboa, 2008, pp. 8-16).

Onde acaba a obra pública, publicável e começa o homem privado? Em Pessoa é quase impossível separar as duas facetas.

Quando, em 1978, foram publicadas as cartas de amor que Pessoa escreveu á sua única namorada, Ofélia Queirós, algumas pessoas pensaram que era uma depredação. Nada mais falso porque essas cartas de amor — como poemas em prosa — são produções literárias curiosíssimas, onde não falta mesmo uma carta do alter-ego Álvaro de Campos a dizer, em Setembro de 1929, à namorada de Pessoa que “o deite para a pia” (onde os porcos manducam).

Pessoa declara o seu amor a Ofélia com as mesmas palavras de Shakespeare no Hamlet para a sua Ofélia. Esta relação não é do princípio ao fim um caso não apenas afectivo mas também literário? Responda o leitor, quase apetece dizer, copiando o nosso Camilo.

Ofélia aparece também como um anti-heterónimo, personagem real e ao mesmo tempo literária. Não nos digam que estas cartas não têm interesse público e científico para conhecer o homem que produziu uma das obras literárias mais geniais de sempre. A sua vida não desperta em nós o desejo de a ler? De a “ler”?

Desperta e é isso que estamos a fazer, para si. E daqui para a frente vamos perceber porque incluímos Fernando Pessoa nesta séria de artigos sobre os “Rostos da República”.

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