Em Fernando Pessoa encontramos uma das mais belas
definições do artista, ou seja, “aquele que exprime o que não tem” ou aquele
que “exprime o que sobrou do que teve”. Fernando Pessoa tinha ideias políticas e
religiosas – muitas delas defendidas com ardor, mas a Verdade e a Vida eram o
fogo que inspirava a sua obra e que esta, por sua vez, buscava.
Fernando Pessoa, retratado acima por Felizardo Cartoon, afirma-se assim como um “polemista
apaixonado” que era frequentemente “as duas coisas em simultâneo” ou não
tivesse ele escrito, em Aniversário, em 1930: “no tempo em que festejavam o dia
dos meus anos, eu era feliz e ninguém estava morto”.
Ele chegou a defender, com argumentos imbatíveis
posições políticas ou teorias improváveis ou que não compartilhava, quanto mais
não fosse “pelo prazer de errar”.
“Sou um pobre recortador de paradoxos, mas
possuo a qualidade de arranjar argumentos para defender todas as teorias, mesmo
as mais absurdas” – dizia ele, em 1916. O melhor exemplo é “O banqueiro
anarquista”, segundo o qual, o banqueiro, "na sua busca de liberdade é o
verdadeiro anarquista”.
Questionava assim, de forma corrosiva a viabilidade e a
sinceridade dos princípios anarcas.
Para os saudosos da monarquia, Pessoa apoiava-os num
dia e no dia seguinte troçava deles. Era a forma que encontrara para se
exprimir contra o governo que estivesse no poder.
Foi antimonárquico até à medula, enquanto existiu rei
e depois tornou-se um crítico severo da República que não lhe parecia muito
melhor. Talvez por isso, ele é um dos mais fervorosos apoiantes do caminhense
Sidónio Pais, apenas depois de ter sido assassinado, em 1918.
Manda a verdade dizer – ou agora se percebe – que
Fernando Pessoa nunca se pronunciou contra a ditadura militar instaurada em
1926 e depositou algumas esperanças em António Oliveira Salazar, enquanto
ministro das finanças.
Em 1935 torna-se “resolutamente antifascista, quando
se apercebeu dos fortes limites à expressão individual impostos pelo Estado
Novo” (cf. ZENITH, Richard, in op. cit. pp. 11 a 15).
Pessoa, fossem quais fossem as mudanças políticas,
sempre defendeu o direito do indivíduo a exprimir-se livremente, na palavra
escrita e falada e no próprio estilo de vida, sendo bastante avançado para o
seu tempo.
É essa postura que o leva a reeditar Canções, do
assumidamente homossexual António Botto, ou então Sodoma Divinizada, do ainda
mais assumido e ousado Raul Leal.
Quando um grupo de estudantes conservadores lançou uma
campanha contra a “literatura de Sodoma”, provocando a apreensão dos dois livros
pela polícia, Pessoa contra-ataca com duas folhas volantes em que criticava a
pretensa moral dos estudantes e defendia com paixão os seus autores.
Ao contrário do seu amigo e vanguardista Almada
Negreiros, Pessoa não gostava de afrontar os burgueses com roupas ou atitudes
extravagantes ou actos chocantes, pois preferia aparecer através da palavra
escrita.
O escândalo e a polémica eram o seu deleite, ao ponto
de o terem apelidado de literato do manicómio. Com o nome de Álvaro de campos,
em 1917, publica um manifesto “MERDA” em que atacava o governo português e os
outros aliados como os alemães.
Pessoa protagonizou uma série de controvérsias e
acontecimentos que deram origem a notícias mais ou menos sensacionalistas.
Muitos levavam à letra tudo o que Pessoa dizia e escrevia, nunca percebendo o
espírito deste criador-fingidor.
A repartição da sua obra por vários seres inventados
começou com uma brincadeira de infância e os heterónimos mostram que Pessoa, de
certa maneira, nunca quis crescer.
Preferiu “evitar responsabilidades, brincar,
experimentar, imaginar, fazer de conta isto ou aquilo, não sendo de facto um
homem normal e adulto como os outros” (cf. ZANITH, Richard, in op.cit, p. 15).
Ou não? Ele nascera já adulto, "com precoce ambição literária, um forte
sentimento patriótico e a assumida missão de ajudar a sua pátria amada através
do seu dom da palavra”? (cf. IDEM, Ibidem).
De facto, ele queria ensinar e incutir cultura entre
os compatriotas, ajudando-os a possuir “convicções profundas” que só as têm as
“criaturas superficiais”. “Os que não reparam para as coisas são sempre da
mesma opinião, são os íntegros e os coerentes. A política e a religião gastam
dessa lenha e é por isso que ardem tão mal ante a Verdade e a Vida” – escreveu
ele em “Crónicas da vida que passa”.
Escreveu sempre, desde o primeiro poema aos sete anos,
até ao leito de morte. Importava-se com a intelectualidade do homem, e pode-se
dizer que a sua vida foi uma constante divulgação da língua portuguesa: nas
próprias palavras do heterónimo Bernardo Soares, "a minha pátria (sic) é a
língua portuguesa".
O mesmo empenho é patente no poema:
Agora, tendo visto tudo e sentido tudo,
tenho o dever
de me fechar
em casa no meu espírito e trabalhar,
quanto possa e em tudo quanto
possa,
para o progresso da civilização
e o alargamento da consciência da
humanidade.
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