O último ano de Salazar no Poder
foi também um annus horribilis para Cerejeira, a completar 80 anos. Teve de
enfrentar as duras críticas de Raul Rego, D. António Ferreira Gomes e de cada
vez mais sacerdotes rebeldes e lidar com a crescente hostilidade dos católicos
perante a guerra colonial.
Anunciava-se, em 1968, o
crepúsculo da dupla de «amigos» que marca a vida portuguesa durante quatro
décadas. De pouco lhe valera ter afirmado, no seu testamento, que “não tive
outro grande amor na minha vida, além de Deus, da Igreja e da minha diocese”
nem mereceu aquilo que mais gostava de ser: “um bispo que amou o seu clero”.
Uma das suas últimas
grandes mágoas foi vivida em S. Paulo, na Universidade Católca através de uma
conferência muito crítica sobre as suas relações com o salazarismo, enviada de
Portugal por um sacerdote, cujo nome foi mantido em segredo.
A conferência destacava o seu
silêncio face ao "assassínio de Humberto Delgado em 1965, à Guerra e aos maus
tratos infligidos nas cadeias”.
Como se isso não bastasse, um grupo de professores daquela Universidade pedia
a sua influência para levar o governo português a pôr fim às guerras coloniais
“que ensanguentam as suas colónias africanas e restituir à liberdade aqueles
que se acham encarcerados por delitos de opinião”.
No final de Agosto de 1968, uma
queda forçava o amigo da “fogueira antiga” a ser operado de urgência a um
hematoma craniano, determinando a sua incapacidade para governar.
A transição do poder para Marcelo
Caetano apanha o Cardeal desprevenido e ocupado a resolver a contestação
interna, despoletada no Seminário dos Olivais e resolvida com a criação da
Universidade Católica, para onde transferiu muitos dos alunos.
Ao mesmo tempo, Manuel Cerejeira
lidava, com extrema dificuldade, com o caso do Padre Felicidade Alves, seu
amigo pessoal mas influenciado doutrinariamente pelo bispo do Porto, D. António
Ferreira Gomes, tornando-se alvo de atenção da PIDE.
O padre Felicidade Alves, “exilado
em Paris”, envia aos portugueses uma carta que “denunciava o conluio da Igreja
com os poderosos”, reivindicava a
Justiça social e propunha uma “mutação rápida e total das estruturas vigentes,
jurídicas, económicas, sociais, políticas, culturais e a instauração de uma
ordem radicalmente nova” (cf. NOGUEIRA, Franco, Um político confessa-se, Porto,
Ed. Civlização, 1986, p.345).
O Cardeal lamenta a extensão do
mal causado pelo escândalo “nas consciências, desprestigiando a Igreja,
quebrando a unidade com o bispo, dividindo o clero e envenenando o incidente
puramente eclesiástico de caluniosas intenções e influências políticas”.
O drama interior do Cardeal era
tal que Salazar terá confessado a Franco Nogueira que o Patriarca "ainda havia
de morrer por causa do padre Felicidade” que o Cardeal acaba por remover e
suspender a divinis das funções sacerdotais, a menos que se retractasse.
No meio destas tristezas, uma
enorme alegria é vivida pelo Cardeal com a abertura da Universidade Católica
Portuguesa, em fins de 1968.
A crise, no entanto, estava
instalada no seio da Igreja, com manifestações de leigos e o definhamento da
Acção Católica face ao silêncio do Patriarca sobre onze padres angolanos
exilados em Portugal sem culpa formada, a saída de sacerdotes do país
perseguidos pela PIDE, as duas prisões do padre Mário Oliveira, na Lixa, a
retirada de Moçambique dos padres brancos que denunciaram o massacre de
Wiriamu.
O regime foi surpreendido com a
escolha de D. António Ribeiro para suceder ao “cardeale bambino” a 29 de Julho de 1971. Recolhe-se então
na Buraca, na Casa do Bom Pastor, aquele que considerava Teófilo Braga “um
anti-clerical a frio, saturado de preconceitos contra a Igreja” e Camilo
Castelo Branco “um infeliz, cheio e contradições".
Faleceu a 1 de Agosto de 1977, aos
89 anos, num Portugal que não era aquele em que viveu. No funeral, apareceram
o seu antigo adversário Raúl Rego e Mário Soares oferendo-lhe a última lição.
Teminava a passagem de uma figura
ambígua enfeudada ao sistema ditatorial legitimadora dos desmandos do seu amigo
António a quem bateu o pé quando se tratava da Liberdade e Independência da
Igreja.
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