Thursday, January 24, 2013

Os rostos da República: Manuel Cerejeira (11)


O último ano de Salazar no Poder foi também um annus horribilis para Cerejeira, a completar 80 anos. Teve de enfrentar as duras críticas de Raul Rego, D. António Ferreira Gomes e de cada vez mais sacerdotes rebeldes e lidar com a crescente hostilidade dos católicos perante a guerra colonial.

Anunciava-se, em 1968, o crepúsculo da dupla de «amigos» que marca a vida portuguesa durante quatro décadas. De pouco lhe valera ter afirmado, no seu testamento, que “não tive outro grande amor na minha vida, além de Deus, da Igreja e da minha diocese” nem mereceu aquilo que mais gostava de ser: “um bispo que amou o seu clero”.

Uma das suas últimas grandes mágoas foi vivida em S. Paulo, na Universidade Católca através de uma conferência muito crítica sobre as suas relações com o salazarismo, enviada de Portugal por um sacerdote, cujo nome foi mantido em segredo.

A conferência destacava o seu silêncio face ao "assassínio de Humberto Delgado em 1965, à Guerra e aos maus tratos infligidos nas  cadeias”. Como se isso não bastasse, um grupo de professores daquela Universidade pedia a sua influência para levar o governo português a pôr fim às guerras coloniais “que ensanguentam as suas colónias africanas e restituir à liberdade aqueles que se acham encarcerados por delitos de opinião”.

No final de Agosto de 1968, uma queda forçava o amigo da “fogueira antiga” a ser operado de urgência a um hematoma craniano, determinando a sua incapacidade para governar.

A transição do poder para Marcelo Caetano apanha o Cardeal desprevenido e ocupado a resolver a contestação interna, despoletada no Seminário dos Olivais e resolvida com a criação da Universidade Católica, para onde transferiu muitos dos alunos.

Ao mesmo tempo, Manuel Cerejeira lidava, com extrema dificuldade, com o caso do Padre Felicidade Alves, seu amigo pessoal mas influenciado doutrinariamente pelo bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, tornando-se alvo de atenção da PIDE.

O padre Felicidade Alves, “exilado em Paris”, envia aos portugueses uma carta que “denunciava o conluio da Igreja com os poderosos”,  reivindicava a Justiça social e propunha uma “mutação rápida e total das estruturas vigentes, jurídicas, económicas, sociais, políticas, culturais e a instauração de uma ordem radicalmente nova” (cf. NOGUEIRA, Franco, Um político confessa-se, Porto, Ed. Civlização, 1986, p.345).

O Cardeal lamenta a extensão do mal causado pelo escândalo “nas consciências, desprestigiando a Igreja, quebrando a unidade com o bispo, dividindo o clero e envenenando o incidente puramente eclesiástico de caluniosas intenções e influências políticas”.

O drama interior do Cardeal era tal que Salazar terá confessado a Franco Nogueira que o Patriarca "ainda havia de morrer por causa do padre Felicidade” que o Cardeal acaba por remover e suspender a divinis das funções sacerdotais, a menos que se retractasse.

No meio destas tristezas, uma enorme alegria é vivida pelo Cardeal com a abertura da Universidade Católica Portuguesa, em fins de 1968.

A crise, no entanto, estava instalada no seio da Igreja, com manifestações de leigos e o definhamento da Acção Católica face ao silêncio do Patriarca sobre onze padres angolanos exilados em Portugal sem culpa formada, a saída de sacerdotes do país perseguidos pela PIDE, as duas prisões do padre Mário Oliveira, na Lixa, a retirada de Moçambique dos padres brancos que denunciaram o massacre de Wiriamu.

O regime foi surpreendido com a escolha de D. António Ribeiro para suceder ao “cardeale bambino”  a 29 de Julho de 1971. Recolhe-se então na Buraca, na Casa do Bom Pastor, aquele que considerava Teófilo Braga “um anti-clerical a frio, saturado de preconceitos contra a Igreja” e Camilo Castelo Branco “um infeliz, cheio e contradições".

Faleceu a 1 de Agosto de 1977, aos 89 anos, num Portugal que não era aquele em que viveu. No funeral, apareceram o seu antigo adversário Raúl Rego e Mário Soares oferendo-lhe a última lição.

Teminava a passagem de uma figura ambígua enfeudada ao sistema ditatorial legitimadora dos desmandos do seu amigo António a quem bateu o pé quando se tratava da Liberdade e Independência da Igreja.

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