Thursday, January 24, 2013

Os rostos da República: Oliveira Salazar (2)

Como qualquer boa dona de casa, cultiva a modéstia pública (carapaça de uma vaidade e orgulho interiores indisfarçáveis), a origem humilde, com agradecimento à “providência”, a força de vontade, o celibato e a rectidão (desmentida para abafar a sua responsabilidade na morte do oposicionista Humberto Delgado, trazendo-o para o nível do cinismo político que condenava nos outros).
 
Julga-se dotado do dom especial da governação que exerce como despotismo esclarecido, através de um conjunto de verdades absolutas e inquestionáveis para levar a nação à glória sobre as quais discursava de forma impressionante para Marcelo Caetano.

Já na Juventude confessara ao amigo Cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira: “nunca nenhum médico perguntou a um doente o remédio que ele deseja tomar, mas apenas o que é que lhe dói”.

Este princípio serve perfeitamente a alguém que olhava para os portugueses e os definia como "excessivamente sentimentais, com horror à disciplina, individualistas sem dar por isso, falhos de espírito de continuidade e de tenacidade de acção”.

Um povo assim não podia nunca cumprir a “vocação do heroísmo, do desinteresse, da acção civilizadora, da grandeza imperial” que necessita de uma “vasta obra de educação política que lhe devolva a consciência da grandeza e da missão providencial da Nação”.

Daí que a “democracia orgânica” dele não passa de um mecanismo construído para o exercício do seu poder absoluto, numa “ascensão dolorosa dum calvário. No cimo podem morrer os homens, mas redimem-se as pátrias” – repete Salazar, desde o início, para que não restem dúvidas.

Na realidade, é a Nação que lhe interessa, não quem a constitui.
Digam lá que, mesmo hoje, um governante assim secreto, distante, reservado, monástico, determinado e altruísta não desenha um perfil capaz de fascinar e congregar a admiração de muitos? E o terreno político era extremamente favorável aos novos ventos do homem de Santa Comba Dão, a quem não devemos honestamente retirar mérito. Ele consegue o primeiro orçamento positivo na década de vinte, abrindo-se-lhe as portas da Chefia do Governo de um país que lhe deve a paz enquanto ao lado estalam duas guerras de uma assentada: a civil de Espanha e a II Mundial.

É o suficiente para uma credibilidade inabalável de modo que os portugueses obedecem até ao fim ao seu mando. Salazar não se confunde apenas com o Estado, ele é o Estado. Controla tudo como se fosse uma economia doméstica, passa a pente fino todos os diplomas e chama a si pelouros sensíveis como os da propaganda, da censura e da polícia política. Lê todas as cartas que recebe e chega a responder a missivas particulares e de crianças, comovendo-se com dramas pessoais que ajuda a resolver.

Onde fica a liberdade no meio de tudo isto?

Salazar dá com uma mão e tira coma outra. Quando defende um “Estado forte, mas limitado pela moral, pelos princípios do direito das gentes, pelas garantias e liberdades individuais” acrescenta-lhe os limites da “integridade política e jurídica do Estado em face de todas as limitações que possam vir-lhe do individualismo e do internacionalismo”.

Acresce que toda a sua acção invoca a segunda parte e esquece a primeira, de tal modo a que a opinião é delito contra a segurança do Estado e alguns chegam a ser punidos com a morte.

INFINDÁVEL DISCUSSÃO

Assim, torna-se autoritário, nacionalista e incapaz de participar num debate ou de dar uma conferência de imprensa. Começa aqui a infindável discussão: foi ou não fascista?

Ele não se assume como tal mas promove práticas fascistas com as milícias, a militarização juvenil, os desfiles marciais e a saudação romana que desaparecem após a derrota daqueles regimes e não por vontade própria porque Salazar assume-se então como mais homem de acção do que teórico – o que o afasta do fascismo.

Por isso, defende um país bucólico, paroquial e isolado em que a escolaridade não é prioritária com medo de um povo culto.

Lutarei sempre contra a independência das mulheres casadas” – declara solenemente na década de 50, associando esta ideia ao combate aos nacionalismos que batem às portas do império colonial.

A guerra colonial que ele não sabe ou não quer evitar faz soçobrar todo o seu sistema político, mas ninguém o pode acusar de incoerente, apesar de se julgar imortal e insubstituível. 

Daí que não tenha preparado a sucessão e se torne o primeiro responsável pela desagregação do regime que ele criou. Ele deixa um país que não agrada a ninguém com uma marca profunda que o faz amado ou odiado mas inesquecível.

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