Como qualquer boa dona de casa, cultiva a
modéstia pública (carapaça de uma vaidade e orgulho interiores indisfarçáveis),
a origem humilde, com agradecimento à “providência”, a força de vontade, o
celibato e a rectidão (desmentida para abafar a sua responsabilidade na morte
do oposicionista Humberto Delgado, trazendo-o para o nível do cinismo político
que condenava nos outros).
Julga-se dotado do dom
especial da governação que exerce como despotismo esclarecido, através de um
conjunto de verdades absolutas e inquestionáveis para levar a nação à glória
sobre as quais discursava de forma impressionante para Marcelo Caetano.
Já na Juventude
confessara ao amigo Cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira: “nunca nenhum médico
perguntou a um doente o remédio que ele deseja tomar, mas apenas o que é que
lhe dói”.
Este princípio serve
perfeitamente a alguém que olhava para os portugueses e os definia como
"excessivamente sentimentais, com horror à disciplina, individualistas sem dar
por isso, falhos de espírito de continuidade e de tenacidade de acção”.
Um povo assim não podia
nunca cumprir a “vocação do heroísmo, do desinteresse, da acção civilizadora,
da grandeza imperial” que necessita de uma “vasta obra de educação política que
lhe devolva a consciência da grandeza e da missão providencial da Nação”.
Daí que a “democracia
orgânica” dele não passa de um mecanismo construído para o exercício do seu
poder absoluto, numa “ascensão dolorosa dum calvário. No cimo podem morrer os
homens, mas redimem-se as pátrias” – repete Salazar, desde o início, para que
não restem dúvidas.
Na realidade, é a Nação
que lhe interessa, não quem a constitui.
Digam lá que, mesmo
hoje, um governante assim secreto, distante, reservado, monástico, determinado
e altruísta não desenha um perfil capaz de fascinar e congregar a admiração de
muitos? E o terreno político era extremamente favorável aos novos ventos do
homem de Santa Comba Dão, a quem não devemos honestamente retirar mérito. Ele
consegue o primeiro orçamento positivo na década de vinte, abrindo-se-lhe as
portas da Chefia do Governo de um país que lhe deve a paz enquanto ao lado
estalam duas guerras de uma assentada: a civil de Espanha e a II Mundial.
É o suficiente para uma
credibilidade inabalável de modo que os portugueses obedecem até ao fim ao seu
mando. Salazar não se confunde apenas com o Estado, ele é o Estado. Controla
tudo como se fosse uma economia doméstica, passa a pente fino todos os diplomas
e chama a si pelouros sensíveis como os da propaganda, da censura e da polícia
política. Lê todas as cartas que recebe e chega a responder a missivas
particulares e de crianças, comovendo-se com dramas pessoais que ajuda a
resolver.
Onde fica a liberdade no
meio de tudo isto?
Salazar dá com uma mão e
tira coma outra. Quando defende um “Estado forte, mas limitado pela moral,
pelos princípios do direito das gentes, pelas garantias e liberdades
individuais” acrescenta-lhe os limites da “integridade política e jurídica do
Estado em face de todas as limitações que possam vir-lhe do individualismo e do
internacionalismo”.
Acresce que toda a sua
acção invoca a segunda parte e esquece a primeira, de tal modo a que a opinião
é delito contra a segurança do Estado e alguns chegam a ser punidos com a
morte.
INFINDÁVEL DISCUSSÃO
Assim, torna-se
autoritário, nacionalista e incapaz de participar num debate ou de dar uma
conferência de imprensa. Começa aqui a infindável discussão: foi ou não
fascista?
Ele não se assume como
tal mas promove práticas fascistas com as milícias, a militarização juvenil, os
desfiles marciais e a saudação romana que desaparecem após a derrota daqueles
regimes e não por vontade própria porque Salazar assume-se então como mais
homem de acção do que teórico – o que o afasta do fascismo.
Por isso, defende um
país bucólico, paroquial e isolado em que a escolaridade não é prioritária com
medo de um povo culto.
“Lutarei
sempre contra a independência das mulheres casadas” – declara solenemente na
década de 50, associando esta ideia ao combate aos nacionalismos que batem às
portas do império colonial.
A guerra colonial que
ele não sabe ou não quer evitar faz soçobrar todo o seu sistema político, mas
ninguém o pode acusar de incoerente, apesar de se julgar imortal e
insubstituível.
Daí que não tenha preparado a sucessão e se torne o primeiro
responsável pela desagregação do regime que ele criou. Ele deixa um país que
não agrada a ninguém com uma marca profunda que o faz amado ou odiado mas
inesquecível.
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