“Não sei o que trará o
amanhã”
Nesse ano, António Ferro, seu
camarada do Orpheu e seu editor é nomeado para a direcção do Secretariado da
Propaganda Nacional. Este democrata fervoroso na sua juventude, escritor e
jornalista era um apologista das letras e das artes do Estado Novo.
Um ano antes, publicara no
Diário de Notícias cinco entrevistas a Salazar e um artigo intitulado “Política
do espírito”, inspirado em Paul Valéry, em que defendia o "desenvolvimento premeditado,
consciente, da Arte e da
Literatura” como necessário ao “prestígio exterior da nação” e ao seu
“prestígio interior, à sua razão de existir”.
Uma das suas primeiras
iniciativas para fomentar a criação literária e o trabalho intelectual foi a
instituição de prémios para livros em cinco áreas: história, ensaio,
jornalismo, romance e poesia.
Há mais de vinte anos,
concluído, Pessoa tinha um livro d versos a que deu o nome Portugal. Em
Setembro de 1034 preenchia os requisitos para se candidatar ao prémio Antero de
Quental (“inspiração bem portuguesa e um alto sentido de exaltação
nacionalista”).
Os amigos incentivaram Fernando Pessoa a concorrer e o próprio
António ferro adiantou dinheiro para a publicação que à última hora viu titulo alterado para Mensagem. Posto à
venda em Dezembro, não tinha dimensão para o Prémio Antero de Quental mas
venceu a segunda categoria (um poema). António Ferro, tendo em conta a simples
questão do número de páginas multiplicou por cinco o valor do prémio (mil
escudos), o mesmo valor da primeira categoria.
A reacção a Mensagem foi
globalmente positiva, ao ponto de Um jornal ter escrito: “a riqueza poética
deste livro é tanta que, ainda que o seu autor nunca mais escrevesse um verso,
o seu nome ficaria para sempre
ligado à mais rica poesia portuguesa” ( in Diabo, 27 de Janeiro de 1935).
Outros acusaram Pessoa de ser “excessivamente intelectual, falho de emoção e
sensibilidade” sendo os seus poemas apenas “telegramas” de "um notável poeta
(...) que raros decifrarão”.
Quando publicou Mensagem,
Fernando Pessoa não tinha perdido inteiramente a esperança no governo de
Salazar. Aceitava o Estado corporativista por “disciplina” e concedia-lhe o
benefício da dúvida que acabaram de vez em Fevereiro do ano seguinte.
Em Janeiro de 1935, Pessoa
indignara-se com um decreto que extinguia as “associações secretas” e no mês
seguinte publica um artigo a defender a Maçonaria. Segue-se uma avalancha de
artigos que caluniavam os Maçons e censuravam Pessoa por os defender. A lei
acabou por ser aprovada a 5 de Abril sem um único voto contra.
Mais determinante para o
desencanto de Pessoa em relação ao regime foi o discurso de Oliveira Salazar na entrega dos prêmios do
SPN, um dos quais galardoava
Mensagem.
Fernando Pessoa não assistiu à cerimónia e ficou espantado ao
ler nos jornais no dia seguinte a recomendação de Salazar: “as produções
criativas e intelectuais dos escritores deveriam não só respeitar certas
limitações mas também seguir algumas directrizes impostas pelos princípios
morais e patrióticos do estado Novo”.
“Nada me pesaria que
invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente”, é
a frase que ele acrescenta em “Livro do Desassossego” à afirmação “A minha
pátria é a língua portuguesa”.
Foi isso que aconteceu. Fernando
Pessoa sentiu-se incomodado, ultrajado pelo facto de a sua língua ter sido
atacada, invadida, controlada.
Conclui-se agora que a idéia
força de Mensagem centrava-se num Portugal não como estado político mas sim
como "nação constituída por seres livres, unidos por uma língua, uma cultura e
uma história notável”.
A ideologia patriótica de
Pessoa era aberta e universalista, ideia que muitos nacionalistas na conseguiam
entender de quem defendia a Maçonaria.
Face ao discurso de Salazar,
Pessoa deixa de escrever porque “ficamos sabendo, todos nós que escrevemos, que
estava substituída a regra restritiva" da Censura, “não se pode dizer isto ou
aquilo”, pela regra soviética do poder, “tem que se dizer aquilo ou isto”.
Ele tinha razão. Entregara
poemas para a revista Sudoeste (dirigida por Almada Negreiros) e três deles
foram omitidos.
A última metade do século XX
não confirma o pedido de Pessoa à namorada Ofélia para nunca dizer a ninguém
que era poeta (“quando muito, escrevo versos”). A omnipresença do poeta levou
muitos a dizer que “tanto Pessoa já enjoa”.
Era o cumprimento da
paráfrase de Álvaro de Campos: “cada vez mais perto do mito, cada vez menos
perto de mim”.
Pessoa sentia-se cansado:
“tenho estado velho por causa do Estado Novo”. É verdade que as crises
hepáticas devidas ao consumo excessivo de álcool massacravam-no, ao ponto de
concluir um poema, em meados de Novembro de 1935, assim: “dá-me mais vinho,
porque a vida é nada” porque “há doenças piores que as doenças” e “há tanta
coisa que, sem existir, /Existe, existe demoradamente, /E demoradamente é
nossa, é nós...”.
Oito dias depois sofre mais
uma crise que não consegue vencer. Foi em 27 de Novembro, aniversário da irmã,
que estava com a família na casa do Estoril.
Estranhando a ausência de
Fernando para o jantar comemorativo, o cunhado procurou-m no dia seguinte. Pessoa
é internado no dia 29, no Hospital de S. Luís dos Franceses, onde é assistido
pelo primo , e escreve as suas últimas palavras: “Não sei o que trará o
amanhã”.
O amanhã trouxe-lhe a morte,
devida a uma pancreatite aguda. No funeral estiveram umas 50 pessoas. Aberta a
herança, o defunto deixava uma arca de madeira, com milhares de textos
originais e inéditos, dactilografados ou manuscritos em cadernos, agendas,
papel dos cafés, folhas volantes, facturas e pedaços de papel rasgado...
No Jazigo da sua avó
Dionísia, o Grande Poeta ficou a aguardar que as suas obras fossem devidamente
publicadas e que o tempo passasse, trazendo uma próxima geração de leitores
entendesse o seu génio.
A fragmentação da sua obra e
o seu viver, no desencantado pós-guerra, acaba por encontrar uma receptividade
e compreensão impossíveis em vida de Fernando Pessoa.
João Gaspar Simões é um dos
responsáveis ao escrever uma biografia pessoana de 700 páginas, em 1950,
contribuindo para o catapultar para o patamar de grande glória das letras
portuguesas.
Mas este autor não chegou a
compreender totalmente o poeta, especialmente os heterónimos que são hoje a
poesia mais rica e original.
Se quase todos consideram Ode
Marítima a obra maior, outros consideram de pouco calor a poesia heteronímica (como José Régio).
Não fora polémica que Pessoa
não pressentisse quando revelava a Adolfo Casais Monteiro, em 1935, a intenção
de deixar para segundo plano os escritos de Caeiro, Campos, Reis, etc. por
recear “nenhuma venda de livros desse género e tipo”, apesar de reconhecer:
“pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo
Reis toda a minha disciplina mental, vestida da musica que lhe é própria, pus
em Álvaro de campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida” em contraponto
a um Fernando Pessoa ”impuro e simples”.
Casais Monteiro faz a
primeira edição póstuma da obra poética de Fernando Pessoa, uma recolha com cem
poemas e Gaspar Simões continua o trabalho de publicação das obras dos
heterónimos nos anos entre 1944 a 1952, que, juntamente com A Mensagem, formam
o primeiro núcleo substancial da poesia pessoana ao dispor do grade público.
Apenas em 1960 Maria Aliete
Galhoz organiza a primeira grande edição de Pessoa publicada no... Brasil, que
serviu de “bíblia” a uma grande geração de leitores de Pessoa.
A divulgação da prosa
pessoana é mais lenta e atravessa as décadas de 60 e 70 do século passado. Só
em 1974 surge uma mudança cósmica no universo criativo de Pessoa com a
publicação do Livro do Desassossego, traduzido em várias línguas.
É um livro
que Pessoa deixou como um amontoado de fragmentos (mais de 500), sem qualquer
ordem ou fio organizativo que desencadeou uma febre colectiva sobre tudo o que
era pessoano, lançando aquele que “não era nada, nunca serei nada” para a
celebridade póstuma em que tinha apostado toda a vida.
Eduardo Lourenço e Richard
Zenith (nosso companheiro nestas crónicas) fazem com que Pessoa se afirme, “no
crepúsculo do milénio, como o emblema da nossa perda de certezas sobre o ‘eu’ e
sobre tudo o mais".
Teresa Rita Lopes, em 1977,
dá a pancada final na tarefa e mostrar toda a obra de Fernando Pessoa e facetas
pouco conhecidas do poeta levando a toda a Europa uma curiosidade sem
precedentes sobre a Língua Portuguesa celebrada com o prémio Nobel de José
Saramago.
De facto, consumava-se o Livro do Desassossego:
“Eu, longe dos caminhos de mim próprio, cego da visão da vida que amo (...),
cheguei por fim, também, ao extremo vazio da coisas, à borda intransponível do limite dos entes, à porta sem lugar do abismo abstracto do mundo”.
Hoje, Fernando Pessoa é
publicado em todos os continentes, em 40 línguas, desde o norueguês ao
vietnamita, do afrikaans ao urdu.
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