Monday, December 2, 2013

Os rostos da República de A a Z (18)


“Não sei o que trará o amanhã”

Nesse ano, António Ferro, seu camarada do Orpheu e seu editor é nomeado para a direcção do Secretariado da Propaganda Nacional. Este democrata fervoroso na sua juventude, escritor e jornalista era um apologista das letras e das artes do  Estado Novo.

Um ano antes, publicara no Diário de Notícias cinco entrevistas a Salazar e um artigo intitulado “Política do espírito”, inspirado em Paul Valéry, em que defendia o "desenvolvimento premeditado, consciente, da Arte e  da Literatura” como necessário ao “prestígio exterior da nação” e ao seu “prestígio interior, à sua razão de existir”.
Uma das suas primeiras iniciativas para fomentar a criação literária e o trabalho intelectual foi a instituição de prémios para livros em cinco áreas: história, ensaio, jornalismo, romance e poesia.

Há mais de vinte anos, concluído, Pessoa tinha um livro d versos a que deu o nome Portugal. Em Setembro de 1034 preenchia os requisitos para se candidatar ao prémio Antero de Quental (“inspiração bem portuguesa e um alto sentido de exaltação nacionalista”). 

Os amigos incentivaram Fernando Pessoa a concorrer e o próprio António ferro adiantou dinheiro para a publicação que à última hora viu  titulo alterado para Mensagem. Posto à venda em Dezembro, não tinha dimensão para o Prémio Antero de Quental mas venceu a segunda categoria (um poema). António Ferro, tendo em conta a simples questão do número de páginas multiplicou por cinco o valor do prémio (mil escudos), o mesmo valor da primeira categoria.

A reacção a Mensagem foi globalmente positiva, ao ponto de Um jornal ter escrito: “a riqueza poética deste livro é tanta que, ainda que o seu autor nunca mais escrevesse um verso, o seu nome  ficaria para sempre ligado à mais rica poesia portuguesa” ( in Diabo, 27 de Janeiro de 1935). Outros acusaram Pessoa de ser “excessivamente intelectual, falho de emoção e sensibilidade” sendo os seus poemas apenas “telegramas” de "um notável poeta (...) que raros decifrarão”.

Quando publicou Mensagem, Fernando Pessoa não tinha perdido inteiramente a esperança no governo de Salazar. Aceitava o Estado corporativista por “disciplina” e concedia-lhe o benefício da dúvida que acabaram de vez em Fevereiro do ano seguinte.

Em Janeiro de 1935, Pessoa indignara-se com um decreto que extinguia as “associações secretas” e no mês seguinte publica um artigo a defender a Maçonaria. Segue-se uma avalancha de artigos que caluniavam os Maçons e censuravam Pessoa por os defender. A lei acabou por ser aprovada a 5 de Abril sem um único voto contra.

Mais determinante para o desencanto de Pessoa em relação ao regime foi  o discurso de Oliveira Salazar na entrega dos prêmios do SPN, um dos quais galardoava  Mensagem

Fernando Pessoa não assistiu à cerimónia e ficou espantado ao ler nos jornais no dia seguinte a recomendação de Salazar: “as produções criativas e intelectuais dos escritores deveriam não só respeitar certas limitações mas também seguir algumas directrizes impostas pelos princípios morais e patrióticos do estado Novo”.

Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente”, é a frase que ele acrescenta em “Livro do Desassossego” à afirmação “A minha pátria é a língua portuguesa”.

Foi isso que aconteceu. Fernando Pessoa sentiu-se incomodado, ultrajado pelo facto de a sua língua ter sido atacada, invadida, controlada.

Conclui-se agora que a idéia força de Mensagem centrava-se num Portugal não como estado político mas sim como "nação constituída por seres livres, unidos por uma língua, uma cultura e uma história notável”.

A ideologia patriótica de Pessoa era aberta e universalista, ideia que muitos nacionalistas na conseguiam entender de quem defendia a Maçonaria.

Face ao discurso de Salazar, Pessoa deixa de escrever porque “ficamos sabendo, todos nós que escrevemos, que estava substituída a regra restritiva" da Censura, “não se pode dizer isto ou aquilo”, pela regra soviética do poder, “tem que se dizer aquilo ou isto”.

Ele tinha razão. Entregara poemas para a revista Sudoeste (dirigida por Almada Negreiros) e três deles foram omitidos.

A última metade do século XX não confirma o pedido de Pessoa à namorada Ofélia para nunca dizer a ninguém que era poeta (“quando muito, escrevo versos”). A omnipresença do poeta levou muitos a dizer que “tanto Pessoa já enjoa”.
Era o cumprimento da paráfrase de Álvaro de Campos: “cada vez mais perto do mito, cada vez menos perto de mim”.

Pessoa sentia-se cansado: “tenho estado velho por causa do Estado Novo”. É verdade que as crises hepáticas devidas ao consumo excessivo de álcool massacravam-no, ao ponto de concluir um poema, em meados de Novembro de 1935, assim: “dá-me mais vinho, porque a vida é nada” porque “há doenças piores que as doenças” e “há tanta coisa que, sem existir, /Existe, existe demoradamente, /E demoradamente é nossa, é nós...”.

Oito dias depois sofre mais uma crise que não consegue vencer. Foi em 27 de Novembro, aniversário da irmã, que estava com a família na casa do Estoril.

Estranhando a ausência de Fernando para o jantar comemorativo, o cunhado procurou-m no dia seguinte. Pessoa é internado no dia 29, no Hospital de S. Luís dos Franceses, onde é assistido pelo primo , e escreve as suas últimas palavras: “Não sei o que trará o amanhã”.

O amanhã trouxe-lhe a morte, devida a uma pancreatite aguda. No funeral estiveram umas 50 pessoas. Aberta a herança, o defunto deixava uma arca de madeira, com milhares de textos originais e inéditos, dactilografados ou manuscritos em cadernos, agendas, papel dos cafés, folhas volantes, facturas e pedaços de papel rasgado...

No Jazigo da sua avó Dionísia, o Grande Poeta ficou a aguardar que as suas obras fossem devidamente publicadas e que o tempo passasse, trazendo uma próxima geração de leitores entendesse o seu génio.

A fragmentação da sua obra e o seu viver, no desencantado pós-guerra, acaba por encontrar uma receptividade e compreensão impossíveis em vida de Fernando Pessoa.

João Gaspar Simões é um dos responsáveis ao escrever uma biografia pessoana de 700 páginas, em 1950, contribuindo para o catapultar para o patamar de grande glória das letras portuguesas.
Mas este autor não chegou a compreender totalmente o poeta, especialmente os heterónimos que são hoje a poesia mais rica e original.

Se quase todos consideram Ode Marítima a obra maior, outros consideram de pouco  calor a poesia heteronímica (como José Régio).

Não fora polémica que Pessoa não pressentisse quando revelava a Adolfo Casais Monteiro, em 1935, a intenção de deixar para segundo plano os escritos de Caeiro, Campos, Reis, etc. por recear “nenhuma venda de livros desse género e tipo”, apesar de reconhecer: “pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da musica que lhe é própria, pus em Álvaro de campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida” em contraponto a um Fernando Pessoa ”impuro e simples”.

Casais Monteiro faz a primeira edição póstuma da obra poética de Fernando Pessoa, uma recolha com cem poemas e Gaspar Simões continua o trabalho de publicação das obras dos heterónimos nos anos entre 1944 a 1952, que, juntamente com A Mensagem, formam o primeiro núcleo substancial da poesia pessoana ao dispor do grade público.

Apenas em 1960 Maria Aliete Galhoz organiza a primeira grande edição de Pessoa publicada no... Brasil, que serviu de “bíblia” a uma grande geração de leitores de Pessoa.

A divulgação da prosa pessoana é mais lenta e atravessa as décadas de 60 e 70 do século passado. Só em 1974 surge uma mudança cósmica no universo criativo de Pessoa com a publicação do Livro do Desassossego, traduzido em várias línguas. 

É um livro que Pessoa deixou como um amontoado de fragmentos (mais de 500), sem qualquer ordem ou fio organizativo que desencadeou uma febre colectiva sobre tudo o que era pessoano, lançando aquele que “não era nada, nunca serei nada” para a celebridade póstuma em que tinha apostado toda a vida.
Eduardo Lourenço e Richard Zenith (nosso companheiro nestas crónicas) fazem com que Pessoa se afirme, “no crepúsculo do milénio, como o emblema da nossa perda de certezas sobre o ‘eu’ e sobre tudo o mais".

Teresa Rita Lopes, em 1977, dá a pancada final na tarefa e mostrar toda a obra de Fernando Pessoa e facetas pouco conhecidas do poeta levando a toda a Europa uma curiosidade sem precedentes sobre a Língua Portuguesa celebrada com o prémio Nobel de José Saramago.

De facto,  consumava-se o Livro do Desassossego: “Eu, longe dos caminhos de mim próprio, cego da visão da vida que amo (...), cheguei por fim, também, ao extremo vazio da coisas, à borda intransponível do limite dos entes, à porta sem lugar do abismo abstracto do mundo”.

Hoje, Fernando Pessoa é publicado em todos os continentes, em 40 línguas, desde o norueguês ao vietnamita, do afrikaans ao urdu.






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