Monday, December 2, 2013

Almada Negreiros: profeta do moderno (1)


Aproveitamos este título de Joaquim Vieira para iniciar uma série de crónicas sobre aquele artista que é inseparável e fez o retrato mais famoso do autor de Mensagem. Almada Negreiros e Fernando Pessoa constituem os arautos maiores dessa essência de ser moderno: ser elegante não é uma maneira de vestir mas sim uma “maneira de ser”.

Almada Negreiros foi o homem das sete artes, desde pintor, desenhador, poeta, romancista a dramaturgo, caricaturista, humorista, actor, panfletário, polemista, bailarino, coreógrafo, cenógrafo, figurinista, vitralista, ilustrador, gráfico, ensaísta e filósofo (cf. ARMERO, Gonzalo, in Todo Almada, ed. Contexto, Lisboa, 1994).

Em todas estas áreas José Almada Negreiros – descobertas e divulgadas por Fernando Pessoa – Almada Negreiros deu corpo à inovação que jorrava de um talento fulgurante na literatura, na poesia e nas artes plásticas.
O seu trabalho incessante ao longo de décadas transforma-o no único artista português alguma vez associado às rupturas estéticas operadas no século XX.

Se uns – com inegável valor – tentaram com intervenções pontuais trazer a modernidade para Portugal, de Almada Negreiros se diz, com toda a razão, que ele quis levar Portugal inteiro para a modernidade, essas tal nova “maneira de ser”.

Se este reconhecimento torna Almada Negreiros num português extraordinário, que diremos quando descobrimos que ele foi um autodidacta que nunca frequentou um curso superior em belas artes ou qualquer outra universidade?

Tudo nasce de um comprometimento pessoal de Almada Negreiros na sua juventude, um gesto improvável num Portugal dominado pelo conformismo e pelo academismo.

A vanguarda – liderada por Almada Negreiros – era constituída por um grupo cujos membros se contavam elos dedos das duas mãos, para não sermos muito “mãos-de-vaca” avarentas, porque grande parte deles viviam fora do torrão natal.

O artista que assinava com um ”d” com haste maior que a palavra Almada teve, por isso, de recorrer ao escândalo, ao sensacionalismo, à provocação e à transgressão, ao contrário do seu amigo Fernando Pessoa, seu companheiro de aventura tímido, reservado e introspectivo.

Se Fernando pessoa parecia agradecer o facto de ninguém reparar na sua existência, Almada Negreiros necessitava do contrário para respirar, distinguindo-se claramente de outros cúmplices como Mário de Sá-Carneiro, Amadeu de Souza Cardoso ou Guilherme de Santa Rita, agentes da ruptura estrangeirados que não beneficiaram do dom da longevidade.

É pois num ambiente solitário e pioneira que Almada desenvolve o seu trabalho num mundo adverso, ao longo de quase toda a vida iniciada em S. Tomé a 7 de Abril de 1893.

Nada o fez vacilar nesse percurso escolhido e assumido até final. Incapaz de se fixar numa só área da criação, Almada Negreiros vivia vertiginosamente num vai e vem entre as artes e as letras, ainda mais diversificado que o francês Jean Cocteau.

Construiu uma obra multidisciplinar sem se preocupar com a coesão ou coerência mas apostado na construção de muitas pontes entre elas.

É verdade que é mais reconhecido hoje pelas artes plásticas mas o grande triunfo de Almada Negreiros é o ter conseguido extrair da sua época o seu estilo enquanto outros se limitaram a tentar impor um estilo à sua época. Quantas vezes sucumbiram nessa caminhada sisífica camusiana enquanto ele seguia o paradigma do renascimento.

É no seguimento, sem ficar preso a Leonardo da Vinci, que Almada Negreiros não abandona o rigor racionalista mas dá largas à expressividade emotiva e poética na pluralidade de centros de interesse e formas múltiplas.

Sendo vanguardista, Almada Negreiros vai aos clássicos buscar os seus modelos, sejam gregos ou italianos de Quatrocentos, para buscar a comunhão dos futuristas como Picasso ou Matisse.

Na literatura, é em Almada Negreiros que encontramos os sinais que anunciam a literatura surrealista com A engomadeira, quase uma década antes do manifesto de Breton, com um texto corrido sem pontuação, em Os saltimbancos anunciam a chegada de Jaymes Joice e do seu Ulisses.

No Teatro, Almada bebe em Pirandello della Miranda mas antecipa as peças de Ionescu e de Beckett.

Chega por hoje, para notarmos que estamos perante um dos maiores criadores de sempre da cultura portuguesa? Apesar de ser recebido de mãos abertas na Espanha e em França, ele optou sempre por regressar a Portugal e aqui se fixar, em detrimento do sucesso que granjeara além fronteiras.

O seu país foi a sua missão porque “é preciso criar a pátria portuguesa no século XX”, conforme repetiu tantas vezes.
O seu país nunca se mostrou – nem mesmo hoje – preparado para um criador da sua envergadura. Uns chamavam-lhe demente, devido à extravagância das suas atitudes na juventude.

Em Manifesto Anti-Dantas e por extenso foi violento nos seus ataques aos mandarins culturais, esse “coio d’indigentes, d’indignos, de cegos” ou essa “resma de charlatães e de vendidos” que “só pode parir abaixo de zero”. Essa violência valeu-lhe o isolamento, sem críticas, sem divulgação, editores e público.

Acresce que o patriotismo de Negreiros não se encaixava nos conceitos da monarquia, da República e do Estado Novo. Para ele um povo completo é aquele que “reúna no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem, portugueses, só vos faltam as qualidades” – escreveu no Ultimatum futurista.

Quando o Estado novo lhe encomendou os frescos para as novas gares marítimas, Almada deixou de fora as cenas do passado glorioso e escolheu tradições populares e o sofrimento da gente miúda. O autodidactismo percebe-se na “Histoire de Portugal par coeur” que parece um olhar ingénuo de uma criança. A ingenuidade e a infância eram temas caros a Almada Negreiros. A primeira representa um estado de pureza em que é possível a vida do poeta que se considerava um “menino d’olhos de gigante”.

Renascer, reencontrar-se, desaprender, reaver a ignorância, reaver a ingenuidade, recuperar a inocência, aprender outra vez são ideias presentes nos textos de Almada, a começar em “Nome de guerra”, uma obra fulcral da literatura nacional de novecentos.
Almada tentou mostrar sempre a eterna candura de um incendiário inconsciente de o ser que 
larga a cidade masturbadora, febril, 
rabo decepado de lagartixa
labirinto cego de toupeiras,
raça de ignóbeis míopes, tísicos, tarados, 
anémicos, cancerosos e arseniados” (cf. Cena de Ódio).

Surpreender, chocar e contrapor, com ironia no sorriso e a malícia do olhar era tão natural como respirar para Almada Negreiros, a começar com o seu “Manifesto anti-Dantas”. Esta sua divisa contra o conformismo que era personificado por Júlio Dantas acaba por ser assimilada por todos os portugueses ao longo do século passado, sempre que alguma polémica surgia.

É com esse “morra! Pim” que Almada Negreiros foge a qualquer tentativa de classificação – sempre redutora de um génio – seja ela de saudosista, simbolista. Futurista, interseccionista, sensacionista, cubista, expressionista, abstraccionista ou… nada disso e tudo isso.

A sua personalidade versátil levou-o em busca de novas formas de expressão como as múltiplas personalidades do seu Fernando Pessoa, com quem colaborou na “Orpheu”, ao lado de Mário de Sá-Carneiro ou Amadeu de Santa-Rita.

A sua obsessão final foi a tentativa de unificar toda a produção artística, a partir de parâmetros egípcios, gregos, bizantinos e florentinos que apontavam para a eternidade e imutabilidade da arte, visível na análise aos painéis de S. Vicente de Fora. Apogeu da pintura portuguesa do século XV, sob assinatura de Nuno Gonçalves.

Ao contrário de Pessoa, Almada Negreiros conhece a consagração popular em vida a tal ponto que mesmo que os portugueses continuem sem conhecer a obra, a alma da Almada foi por todos amada. Perdão, é por todos amada.

Ninguém como ele sabia que “nascer é vir a este mundo, não é ainda chegar a ser” – como escreveu em 1935 - até porque “um cordão umbilical não se falsifica. Ou há ou não há”.

Almada Negreiros é um dos resultados mais felizes da colonização portuguesa, nascido na Roça da Saudade (que outro nome havia de ser), na Ilha de S. Tomé, em pleno Equador, a 7 de Abril de 1893 – há 120 anos.




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