Saturday, June 6, 2009

Franceses em Braga há 200 anos (13)

Na cronica anterior falávamos sobre a decisão de Soult, depois de abandonar as terras de Lanhoso, à chegada a Salamonde, de abandonar a estrada para Chaves e seguir a vereda para Montalegre. Ninguém julgaria possível fazer passar por ali um exército, mas conseguiu, numa jornada épica digna de uma grande epopeia. Pela ponte de Misarela se lançaram as "tropas francesas, rotas, famintas, descalças e escorraçadas, qual fugitivo rebanho que lobos esfaimados perseguissem inexoravelmente" — escreve o General Carlos Azeredo na obra “As populações a norte do Douro e os Franceses em 1808 e 1809”, Porto, 1984, ed. Museu Militar.

Citando o diário do Marechal Soult, as suas tropas encontravam-se em terreno adversário que  nunca conhecera de quadrúpedes "senão algumas cabras selvagens" e os soldados eram obrigados a marchar a pé, conduzindo os cavalos pela rédea, puxando-os muitas vezes para os fazer transpor um rochedo que a todo o momento barrava o caminho.

O exército inteiro com cerca de 15 mil homens foi obrigado a passar por estes caminhos, desarmados porque tinham destruído os cunhetes da artilharia e os cartuchos tinham sido danificados pela chuva que caía há alguns dias.

Soult foi também informado de que e Ponte do Saltadouro, ou Ponte Nova estava defendida e cortada, por populares e algumas Ordenanças convocados pelos Capitão-Mor de Ruivães, António Luís de Miranda de Magalhães e Meneses que convocara através dos pelos párocos cerca de 1300 homens cujo armamento eram utensílios de trabalho, piques ou algumas espadas velhas.

O Capitão António Luís de Miranda, na manhã do dia 15 de Maio, coloca junto de cada ponte  uma das bocas de fogo de que dispunha, e mandou ainda algumas forças para a Ponte da Misarela.

Soult não perdeu tempo e tinha de salvar a passagem do Saltadouro e encarregou 100 homens dessa tarefa, numa acção de surpresa durante a noite.

Na noite de 15 para 16 de Maio, o grupo saiu de Salamonde e a coberto da noite aproximou-se em completo silêncio dos restos de velha Ponte.

Dulong deixou os seus homens escondidos nas proximidades e, rastejando, até à ponte e ali constatou "com espanto e incredulidade que os defensores, após tanto trabalho para cortar o velho e robusto arco de cantaria, tinham deixado uma prancha estendida entre os dois braços da ponte.

Esquecimento? Desleixo? «A imprudência portuguesa?».

Na verdade um daqueles acasos imprevistos e inacreditáveis que tantas vezes alteram o curso da História!" — comenta o General Carlos Azeredo.

Enquanto, poucos metros à sua frente, os defensores dormiam abrigados numa choupana e entregues a uma sentinela incauta e ensurdecida pelo bramir da corrente, Dulong recuou até junto dos seus homens.


Vale a pena agora seguir esta descrição: "Dulong voltou a rastejar até à ponte e fez passar atrás de si, um a um os seus militares ao longo da prancha, olhos fitos na voragem do abismo e músculos retezados para resistir à vertigem; um dos seus homens resvalou na madeira húmida e despenhou-se no turbilhão da corrente lançando no espaço um longo e dramático grito de pavor. Os assaltantes suspenderam a respiração e os movimentos, enquanto Dulong na frente olhava a imóvel sentinela portuguesa; mas o homem continuou mergulhado no seu turpor pois o trovão contínuo da violência das águas abafava todos os outros ruídos. Após alguns momentos de angustiada espera os assaltantes continuaram no seu lento avançar e assim o Major foi colocando a sua força na margem oposta e cercando nas trevas a cabana onde se abrigavam os incautos defensores da ponte, cuja sentinela fora abatida com um silencioso golpe de sabre.

E foi de súbito, sem tempo para reagir, que os ensonados camponeses vislumbraram, à luz ténue dos restos de uma fogueira, o lampejar do aço frio dos sabres e das baionetas empenhado no cruel afã da degola, do rasgar dos corpos indefesos, enfim, do abrir dessas fontes quentes e rubras por onde em borbotões se evola o sopro irrecuperável da vida.

Poucos segundos, alguns gemidos prontamente abafados e o odor pegajoso do sangue fresco, bastaram para consumar aquela tragédia quase silenciosa.

Pobre gente! Vítima da sua ignorância e da sua excessiva confiança, merece bem, apesar de tudo, a nossa homenagem!

(...)

Mas após duas horas de marcha a tropa francesa foi detida no sítio da Ponte da Misarela, sobre o rio Rabagão: o pesadelo de Soult ainda não terminara!

Faltava a Ponte diabólica.

É numa paisagem estranha, no fundo de um desfiladeiro rasgado no flanco da Serra da Cabreira, entre escarpas medonhas, bravias e solitárias que se ergue a inesperada Ponte da Misarela!

Com o seu tabuleiro lajeado, estendido a cerca de 30 metros e dobrado sobre o fecho de um único arco de 12 metros de altura, a sua idade vem da sombra dos tempos e a crença popular afirma que na sua origem está um pacto maldito firmado entre um padre e o próprio Diabo.

Por debaixo de si, escumando e despedaçando-se contra a penedia abrupta, passa o Rabagão, grosso no Inverno e no Estio enfiado, a caminho do Cávado.

Entrincheirados na margem direita, guardando a ponte, cuja passagem estava barrada por pesados obstáculos, estavam cerca de 400 homens, comandados pelo Sargento-Mor José Maria de Miranda de Magalhães e Meneses, filho do Capitão-Mor de Ruivães.

Mandado na véspera para a Misarela, pelo pai, com a incumbência de cortar a ponte e efectuar a sua defesa, o José de Miranda não conseguira convencer a maior parte dos seus homens, naturais dali da região, da absoluta conveniência em cortar o arco da ponte.

Como haviam de passar o rio com as suas colheitas ou os seus gados? Como passar para irem à feira ou a Ruivães, quando as águas fossem grossas? Para mais o que era necessário era pôr fora da nossa Terra os franceses! Para quê cortar-lhes a passagem para a fronteira? Quem fez a Ponte de Misarela não nos faz outra como ela!, e nada deste mundo demoveu os rijos e casmurros montanheses a deixar cortar a sua Ponte."

Consentiram em que fossem derrubadas as guardas, atolaram o tabuleiro com troncos, penedos e obstáculos vários e nada mais.

A meio da manhã do dia 16 de Maio foram avistados os primeiros militares inimigos: eram urna longa fila, interminável, de homens e animais, fatigados, que marchavam para norte acossados, mas que a fome, o número e o ódio ainda mantinham temíveis, perigosos e violentos.

Assim que a guarda avançada do II Corpo chegou à distância de tiro, os defensores romperam com um fogo nutrido que dizimou o pelotão da frente e fez recuar, surpreendidos, os que se lhe seguiam.

Mas a Ponte Misarela estava ali e era preciosa atravessá-la para que os homens de Soult chegassem à Galiza e abandonassem o Minho. Esperavam-nos momentos de grande dramatismo e lágrimas.

No comments: