Palavras sobre bracarenses que fazem, porque há gente fantástica, não há? Há, a começar por ti.
Friday, March 25, 2011
Os rostos da República de A a Z: Afonso Costa (01)
Deixamos uma série de crónicas sobre a implantação da República e iniciamos hoje uma nova série de textos sobre as grandes figuras da República, desde os seus cabouqueiros aos seus presidentes (*).
António Maria Azevedo Machado Santos (1875-1921), oficial da Marinha de Guerra, que liderou os revoltosos em Lisboa com a sublevação, no dia 4 de Outubro de 1910, do quartel de Infantaria 16 e, após a morte de Cândido dos Reis, foi a ponta de um iceberg que começara a emergir na sociedade portuguesa vinte anos antes.
O oficial que comandou das forças na Rotunda, no dia 5 de outubro, coroou um esforço de muitos intelectuais que durante décadas criaram a convicção urbana de que a Monarquia estava a destruir-se por dentro. Para esse movimento contribuí-ram homens como Afonso Costa, o reformador intransigente.
A alcunha de "mata-frades" dada a Afonso Costa pelos seus opositores reflecte bem a intensidade com que este político levou a peito a tarefa de desmontar o poderio da Igreja após o 5 de outubro. Porquê? Há factos biográficos que explicam determinadas ideias políticas e Afonso Costa é paradigmático. Daí que, conhecer os traços biográficos desses expoentes da República se afigure importante para compreendermos estas ou aquelas posições ideológicas ou políticas.
É verdade que a subjugação do país aos interesses coloniais britânicos, os gastos da família real, o poder da igreja, a instabilidade política e social, o sistema de alternância de dois partidos no poder (os progressistas e os regeneradores), a ditadura de João Franco, a incapacidade de acompanhar a evolução dos tempos e se adaptar à modernidade contribuíram para um imparável processo de erosão da monarquia portuguesa do qual os defensores da república, particularmente o Partido Republicano, souberam tirar o melhor proveito (cf. COUTO, Célia Pinto do, ROSAS, Maria Antónia Monterroso, O tempo da história, 3.ª parte, Porto, Porto Editora, 2004, p.124).
Mal assumiu a pasta de ministro da Justiça e Cultos no governo provisório saído da revolução, chefiado por Teófilo Braga, Afonso Costa decidiu-se a concretizar, com uma determinação pessoal que gerou amplo anedotário, um combate sem quartel aos poderes religiosos na política, sociedade, cultura e mentalidade portuguesas.
As ordens religiosas, principalmente os jesuítas, foram encerradas e o ministro em pessoa notabilizou-se pela sua participação nos interrogatórios dos religiosos condenados por não obedecerem às novas regras.
O ensino religioso foi retirado das escolas, o Estado torna-se laico, o juramento de funcionários públicos e militares deixou de ter alusões a Deus, o divórcio foi instituído, o casamento passou a obedecer a registo civil... a sequência de medidas tomadas pelo Governo nos primeiros meses da República é galopante e Afonso Costa foi um dos seus principais construtores.
A convicção anti-clerical deste advogado nascido em Seia em 1871 vinha de longe e já em 1895 atacava violentamente as políticas sociais da Igreja na sua dissertação de doutoramento.
Para trás ficava uma juventude bem sucedida, entre Seia e Coimbra, onde se deixa apaixonar pela actividade política, de tal forma que, a 19 Junho de 1900, quando faz o primeiro discurso no Parlamento marcado por veementes ataques à monarquia, não consegue travar a sua vaidade pessoal e escreve à mulher: “já comecei a guinchar”. Estreava-se o “mais amado e odiado dos políticos republicanos”.
Partimos do princípio de que a vida (biografia) de uma pessoa ajuda a perceber algumas das ideias que as timbram para toda a vida e são a marca de água da história de um país. Melhora prova desta tese – que não tem a ousadia de um doutoramento – é Afonso Augusto da Costa, para além de outros.
O mais amado e odiado dos políticos republicanos possuía tanto de idealismo hegeliano como de patriota camoniano, tudo bem embrulhado em democracia ideal e pragmatismo ditatorial.
Os seus adversários chegaram a dizer que “ele batia na mãe” (cf. RAMOS, JÚLIA LEITÃO, in Afonso Costa, ed. Círculo de Leitores, Lisboa, 2002, p.9). Se esta insinuação é desprovida, ajuda a perceber a radical Lei da Separação da Igreja do Estado que fez vergar a instituição milenar ao poder civil em idade de amamentação.
Menos polémico é conceder que Afonso Costa era um homem de acção dinâmica, apesar de ser tudo o que menos se esperava de um professor catedrático de Direito tão jovem que soube gerir como ninguém os ciclos favoráveis em plena monarquia e na I República, radicalizando os seus ideais ao ponto de justificar a entrada de Portugal na I Guerra Mundial.
Ele possuía a habilidade (de advogado) para a intriga, a táctica suficiente para manipular os bastidores da política e mentir quando era necessário. Para ele ser “popular era ser impotente” e a sua arte era a da persuasão.
Para isso, contava com os seus dotes de oratória. Eram notáveis o seu entusiasmo, o teatralismo e a clareza com que expunha o seu raciocínio sempre com fundamento legal e fervor militante. Acreditava no que dizia e deixava os adversários sentados na dúvida das suas certezas e buscava compromissos a toda a hora, ao ponto de Guerra Junqueira o definir como “um ciclone e um cronómetro” que tinha tanto de perigoso (ciclone) como de admirável (cronómetro) na frieza matemática da decisão tomada.
Era um chefe e está tudo dito... com um sorriso perverso usado como uma arma contra os adversários, como descreveu José Jobim: um “plebeu arrogante”.
Se as cartas para a mãe transpiram alguma sinceridade, deve reter-se que ele tinha orgulho “em sentir que os meus actos hão-de ser aprovados e louvados pelo povo português, agora e na história, mas tudo eu trocaria pela certeza de que Portugal era feliz. Quer dizer – escreve ele à mãe, em 1910, - para ser feliz o meu país, eu condenar-me-ia, de bom grado à perpétua mediocridade, ao silêncio profundo dos contemporâneos e dos vindouros” (cf. Correspondência Política de Afonso Costa, reunida por A. H. Oliveira Marques).
Para Afonso, a República era um dogma. Uma prisão para um optimista inveterado ou não tivesse ele uma cultura académica bebida no positivismo de Auguste Comte que profetizou o fim inevitável de todos os regimes absolutistas (católicos).
A República era o “caminho que se abre a todos os povos sem excepção” para sua transformação profunda contra uma Igreja Católica “propagadora de superstição e destruidora da dignidade humana” através da “ascensão das classes trabalhadoras à vida política” (cf. Obras de Afonso Costa, Discurso Parlamentares 1900-1910, Europa-América, 1973, pp. 134-476). E deixamos aqui um bom mote para a próxima: o rosto socialista da República.
*Nota: imagem extraída de Ventura, António, Os postais da Primeira República, Edições Tinta da China, 2010, p. 101.
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