Monday, January 11, 2010

Franceses em Braga há 200 anos (27)


Na crónica anterior concluíamos que as Invasões Francesas perturbaram profundamente a vida das instituições eclesiásticas (dioceses, paróquias e congregações) iniciado por influência externa (filosofismo e revolução francesa) e pelo definhamento pessoal e material de muitas casas religiosas. Muitos padres e religiosos que tiveram de deixar igrejas e conventos durante as Invasões quebraram rotinas que não retomariam facilmente. mas as mudanças não se ficaram por este efeito nacionalista que agregou o povo e o clero.

Sucessivamente, foi-se alterando a relação Igreja-sociedade, especialmente com o advento do liberalismo como sentimento e cultura, ainda antes de 1820. Pouco a pouco, a consciência individual e a determinação da vida pessoal e colectiva, em especial nos meios urbanos, foi transitando das tradições (profundamente marcadas pela religião) para as escolhas marcadamente pessoais.

As Invasões constituíram assim o primeiro abalo do quadro político-eclesiástico anterior, interrompendo os funcionamentos habituais das dioceses e paróquias e perturbando gravemente a vida religiosa e claustral, bem como as práticas devotas da população.

O clero e as autoridades eclesiásticas anteviam — como já sucedia em França — consequências nefastas para os seus direitos e regalias. Eles sabiam que os adversários do constitucionalismo monárquico (fossem eles franceses ou outros) eram-no também da religião do Estado, como muito bem descreve D. Manuel Clemente, Prémio Pessoas 2009, no seu livro "Igreja e sociedade portuguesa do liberalismo à república", Lisboa, Grifo, 2002.

Ao clero aliavam-se as autoridades e o que ainda restava da nobreza, pelo que não admira que os editais a solicitar a resistência popular porque a "causa que vamos defender é a nossa fé, e é de Deus, porque os inimigos não pretendiam só esgotar os nossos bens, mas destruir a nossa religião que professamos" (Câmara Municipal de Barcelos, no dia 28 de Junho de 1808). Daí que "o voluntário que não se alistar mostra não ser amigo de Deus, da Pátria, nem de si" — como descrevia "Diário de Frei Ignácio de S. Carlos", um monge do Mosteiro de Rendufe, Amares.

Mas sucederam-se excepções, como sempre acontece, de que é flagrante exemplo o Arcebispo de Braga de então, D. José da Costa Torres, que manteve um "calculado alheamento" que chegou a ser enaltecido pelo Deão da Sé, no dia da restauração da Independência, (1 de Dezembro) de 1808.

Havia também alguns prelados que, face à notória ignorãncia da maioria dos ouvintes das suas prédicas, por temor, prudência, lisonja ou francesismo, confessos, se aproveitavam do púlpito para tentar persuadir os fiéis, fazendo-os crer que Portugal "devia ser francês, porque também o foi o pai do primeiro rei, o Conde D. Henrique".

Este pensamento ambíguo justifica-se porque a primeira invasão não causara grandes estragos no Minho, mas depressa, a postura muda para sintonizar com o padre de Fontarcada, com que abrimos esta crónica. Testemunho dessa mudança radical de pensamento face aos franceses é-nos dado pelo pároco de Tebosa, Braga, onde passaram as tropas francesas a caminho do Porto, padre António José Monteiro, no seu "Diário da Minha vidinha", guardado no Arquivo Municipal de Ponte de Lima.

Este "Diário" lido por João Francisco Marques (art.cit.) descreve: "na marcha do exército de Soult para o Porto, a soldadesca destruía pelo caminho o que mais precioso havia nos conventos e casas onde se aquartelava, matando, roubando, fornicando, incendiando aldeias e freguesias inteiras. Ao espalhar-se pela província do Minho, de Valença a Braga, de Guimarães às margens do Ave, cometeram os franceses as maiores barbáries: cegavam o centeio para os cavalos, queimavam portas e janelas, abusando das mulheres casadas, 'zombavam' das solteiras, ultrajavam freiras, delapidavam igrejas, 'lançavam pelo chão as Sagradas Escrituras, pegavam fogo a mosteiros e templos, assassinava padres, metiam cavalos nas capelas, não havendo maldade que não cometessem'.

Foi assim que o povo começou a resistir, através de emboscadas, eliminando os franceses que podia e, juntamente, com eles os "amigos dos franceses", mesmo que fossem "gente de virtude e de religião".

Estavam lançadas as sementes para a aliança entre o clero, as autoridades locais e o povo, no mesmo objectivo patriótico na região de Entre Douro e Minho, estimulando em cadeia o mesmo sentimento anti-francês para lá do Marão, como testemunho as grandes celebrações de que há documentação em Melgaço, Guimarães, Viana do Castelo, Braga e Póvoa de Lanhoso. esta aliança vai ser decisiva na expulsão dos franceses há 200 anos.

Ao lado desta movimentação do povo em armas, há o trabalho desenvolvido pelas Juntas, onde igualmente a igreja estava presente, aliadas às hierarquias militares, uma vez que o exército Português estava praticamente sem efectivos de combate no terreno, para a formação dos milicianos. Os casos de Braga e de Viana do Castelo são paradigmáticos.

Os documentos que nos testemunham este movimento são os cartórios notariais ou então documentos oriundos dos mosteiros que, poucos anos depois, vão ser banidos. De alguns deles daremos conta na próxima crónica os quais atestam até que ponto o clero do Minho se envolveu de forma decidida e directa no combate aos franceses

No comments: