Monday, June 29, 2009

PE — uma goleada do PI


O velho continente viveu uma das goleadas das antigas.

Foi a única prevista e aumentada pelas previsões dos comentadores na antevisão desta jornada: o ganhador das eleições para o Parlamento que arrebatou mais poderes foi o Partido da Indiferença (PI), em toda a Europa mas com especial gravidade em Portugal, onde atingiu quase 63 por cento.

O seu triunfo foi de tal calibre que quase duplicou os votos obtidos por todas as forças políticas que Domingo pediam o voto aos portugueses.

Não deixa de ser injusta esta indiferença pelas instituições da Europa, especialmente nos países menos ricos, como é o caso de Portugal, que deviam sentir ao menos algum sentido de gratidão: se não fossem os milionários cheques que desde 1986 os países mais ricos assinaram para países como a Grécia e Portugal e agora para o Leste Europeu, tinha sido impossível a construção de auto-estradas, aeroportos, linhas ferroviárias e fundos sociais que aumentaram o rendimento per capita dos lusitanos.

Provavelmente, a apatia tradicional dos europeus nas eleições para o Parlamento Europeu estará na falta de um estímulo concreto: saber qual das equipas vencerá e vai governar.

Nas eleições europeias, semelhantes a uma jogo amigável, como se disse, não está em causa nenhum título e isso faz com que as equipas se limitem a pôr em campo os reservistas.

Mais, estamos perante umas eleições contraditórias em si mesmas; elas não escolhem um governo. Que escolhem os eleitores? Nada e se é nada deixam de ser eleitores.

Se deixam de ser eleitores, não põem os pés nas bancadas do jogo a feijões... entre equipas de candidatos promovidos pelas televisões para que o espectáculo continue, diante da indiferença dos eleitores.

Por isso, os comícios destas ditas eleições tinham os mesmos de sempre, aqueles que não perdem um treino da equipa e comparecem mesmo nos jogos sem interesse, para o espectáculo da televisão que depois promove até à exaustão o pitoresco e o anedótico.

Assim, pouco importa que as franjas incondicionais de cada partido, dos conservadores aos progressistas tenham gritado vitória na noite fria de Domingo. O resultado tem o valor que se dá a um desafio amigável de pré-temporada ou de uma sondagem, uma vez que as empresas de sondagens também estavam a treinar, a avaliar pelos resultados.

Não há nada de estranho na vitórias de uns ou na derrota de outros se tivermos em conta que elas suscitam o mesmo desinteresse entre os cidadãos que não votaram que entre os seus deputados.

Basta as cadeiras frequentemente vazias do Parlamento de Estrasburgo para chegar à dedução fácil de quem nem sequer aos luxuosamente pagos parlamentares do Continente lhes interessa grande coisa o que ali se decide.

A mesma indiferença atravessa os partidos e os eleitores porque, longe de considerarem o grande areópago um organismo influente e digno de respeito, é habitual que todos os utilizem como nos senados para colocar políticos fracassados nos combates domésticos e onde não são exigidos grandes atributos de competência, salvo honrosas excepções.

Mas aí está o grande engano: são estes senhores deputados que vão decidir o preço do leite e os abates aos barcos da pesca, ou os cheques para os investimentos necessários à modernização do nosso país, a começar pela requalificação dos portugueses.

Como explicar tudo isto. Só indo aos livros. Está tudo inventado mas continua sem servir de lição para ninguém, nem para quem está no poder nem para os que anseiam sofregamente por ele. Ora leiam. se fazem favor, sim?

Um dos piores sintomas de desorganização social, que num povo livre se pode manifestar, é a indiferença da parte dos governados para o que diz respeito aos homens e às cousas do governo, porque, num povo livre, esses homens e essas cousas são os símbolos da actividade, das energias, da vida social, são os depositários da vontade e da soberania nacional.

Que um povo de escravos folgue indiferente ou durma o sono solto enquanto em cima se forjam as algemas servis, enquanto sobre o seu mesmo peito, como em bigorna insensível se bate a espada que lho há-de trespassar, é triste, mas compreende-se porque esse sono é o da abjecção e da ignomínia.

Mas quando é livre esse povo, quando a paz lhe é ainda convalescença para as feridas ganhadas em defesa dessa liberdade, quando começa a ter consciência de si e da sua soberania... que então, como tomado de vertigem, desvie os olhos do norte que tanto lhe custara a avistar e deixe correr indiferente a sabor do vento e da onda o navio que tanto risco lhe dera a lançar do porto; para esse povo é como de morte este sintoma, porque é o olvido da ideia que há pouco ainda lhe custara tanto suor tinto com tanto sangue, porque é renegar da bandeira da sua fé, porque é uma nação apóstata da religião das nações – a liberdade!


Antero de Quental, in 'Prosas da Época de Coimbra'

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