Palavras sobre bracarenses que fazem, porque há gente fantástica, não há? Há, a começar por ti.
Thursday, August 12, 2010
Cem anos de República no Minho (11)
Diz-se “por lá que o Sr. D. Miguel está no Alto Minho, no concelho da Póvoa de Lanhoso. Propalam-no certos padres, não sei com que alcance. A estupidez tem intuitos impenetráveis. Não percebo para que fim espalham tão absurdo boato, se não é para alarmar o governo ou lograr incautos” — é assim que Camilo Castelo Branco começa a desenvolver o mito do miguelismo em “A Brasileira de Prazins”.
Esta incursão — ou parêntesis — na escrita camiliana apenas se destina a provar que o clero católico rural teve uma influência veemente no retardar dos ideais da Revolução Francesa que hão-de originar esntre nós a implantação da República.
A resposta é precisamente “lograr incautos”. É o próprio Camilo Castelo Branco que disso está convencido quando explica a natureza do fenómeno e aponta os seus autores: “se pudéssemos dar remédio mais suave à doença desse miserável impostor, de quem eu sei mais algumas traficâncias. Constou-me há poucas horas, que umas beatas de Braga, abastadas, e de apelido Botelhas, tinham enviado uma importante quantia, por intermédio de um certo abade, a um D. Miguel que está escondido em Portugal".
De facto, narra Camilo, “constava que D. Miguel estava escondido na residência do abade de São Gens de Calvos, no concelho da Póvoa de Lanhoso, o reverendo Marcos António de Faria Rebelo. Que pouquíssimas pessoas o tinham visto, porque Sua Majestade só se mostraria aos seus amigos fiéis quando entras-sem pela Galiza os generais estrangeiros que se esperavam, uns do antigo exército carlista, outros de Inglaterra.
O primo Cristóvão redarguiu, magoado na sua esperteza, que era tão certo estar elrei em Calvos como era certo ter-me beijado a régia mão em casa do abade, na noite sempre memorável de 16 de Abril de 1845.
Que só o tinha visto de relance em Braga em 32, mas que o conhecera pelo retrato; que até manquejava um pouco, tal e qual, como se sabe, depois que Sua Majestade quebrou a perna em 28. Que el-rei nomeara o abade de Calvos seu capelão-mor, que dera a mitra de Coimbra ao abade de Priscos, e fizera chantre o padre Manuel das Agras, e a ele lhe fizera a mercê de duas comendas e o título de barão de Bouro, afora outras graças a diversos clérigos e leigos.”
Estão criados os ingredientes camilianos para a realização de uma sessão da Corte do rei absolutista em Calvos, na mais perfeita clandestinidade.
“Naquele ano, por meado de 1845, espalhara-se no ambiente dos realistas, como um aroma de jardins floridos, o boato de que vinha o Sr. D. Miguel. (...) . Na residência do abade Marcos Rebelo, em São Gens de Calvos, havia uma sala com alcova e janelas sobre uma horta arborizada. (...) Dez horas. Abriu-se então a porta da alcova, que rangeu ligeiramente na couceira desengonçada, e saiu um sujeito de mediana estatura, ombros largos, barba toda com raras cãs, olhos brilhantes, pálido-trigueiro, um nariz adunco. Representava entre trinta e seis e quarenta anos.
Sentou-se à braseira e preparou um cigarro, vagarosamente, que acendeu na aresta chamejante de uma brasa. Com o cigarro ao canto dos lábios e um olho fechado pelo contacto agro do fumo, foi abrir uma das vidraças, e pôs fora a mão a sondar a temperatura. Coxeava um pouco. Recolheu a mão com desagrado e fechou a janela. Vinha subindo a escada de comunicação com a cozinha uma mulher idosa, em mangas de camisa, meias azuis de lã e ourelos achinelados. Pediu licença para entrar, fez uma mesura de joelhos sem curvar o tronco, e perguntou:
— Vossa Majestade passou bem?
— Optimamente, Se-nhorinha, passei muito bem.
— Estimo muito, Real Senhor. O Senhor Abade foi chamado às oito horas para confessar uma freguesa que está a morrer de uma queda, e deixou dito que pusesse o almoço a Vossa Majestade, se ele não chegasse às nove e meia".
Serve-se o banquete ao Rei que “já tinha comido tripas, e dizia que no exílio se lembrara muitas vezes desta saborosa iguaria com feijão branco e chispe, que tinha comido em Braga. O abade de Calvos sensibilizava-se até às lágrimas quando via el-rei a esbrugar uma unha de porco e a limpar as régias barbas oleosas das gorduras suínas. O terceiro prato era vitela assada. (...) Ninguém há-de crer o que Sua Majestade atafulha naquele bandulho! — e dizia que lhe dava vontade de chorar, lembrando-se das lazeiras que ele tinha apanhado; porque o abade contava que lera no Deus o quer, do visconde de Arlincourt, que o Sr. D. Miguel, em Roma, não tinha às vezes 10 réis de seu para almoçar uma xícara de leite.
(...) No fim do copioso almoço, el-rei fumava charutos espanhóis, de contrabando; desabotoava o colete, dava arrotos, repoltreava-se na cadeira de sola um pouco desconfortável, e vaporava grande colunas de fumo que se espiralavam até ao tecto.”
Depois, o falso rei despachará assuntos do reino.
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